A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 completou 30 anos este mês, mais precisamente em 05 de outubro. Foi elaborada após 20 meses de intensos debates. Representa a saída do Brasil do Regime Militar.
Com o país em crise desde 2014, reformas e até mesmo a possibilidade de convocar uma nova Constituinte, para elaborar um novo marco jurídico, têm pautado as discussões no espaço público.
A Assessoria de Comunicação Social (Ascom) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) convidou os pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) Leonam Liziero e Maria Creusa Borges para avaliarem o futuro da carta magna brasileira.
Na foto, Ulysses Guimarães, um dos principais opositores à Ditadura Militar e quem encabeçou as Diretas Já e a Constituinte de 1988, com uma cópia do documento em mãos.
Confira, abaixo, a entrevista:
Ascom: Ao completar 30 anos de sua promulgação, a possibilidade de uma nova Constituinte foi levantada por candidatos à Presidência da República. Em que medida a solução para uma crise está em uma nova Constituição?
Leonam Liziero: A Constituição de 1988 foi o resultado de longos debates em uma complexa Assembleia Nacional Constituinte, iniciada em 1987. Há uma desdita em nossa tradição jurídica que a mudança da legislação ou, neste caso, da Constituição, é a saída para uma crise.
Constituições inauguram ordens jurídicas; a de 1988 consolidou a nova ordem da redemocratização. Um País democrático é incompatível com a Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969 e com os aberrantes Atos Institucionais. O Brasil não tem uma tradição efetivamente democrática; os excluídos nunca tinham tido alguma voz antes.
A Constituição de 1988 não é perfeita, como bem disse o saudoso Dr. Ulysses Guimarães no discurso de sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, mas é nosso dever respeitá-la, uma vez que nunca antes o Brasil teve uma Constituição tão avançada em um projeto de um Estado Democrático de Direito.
Esta Constituição, como disse o Dr. Ulysses naquela mesma ocasião, deve ser a luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. Neste sentido, os avanços paulatinamente conquistados poderiam ser colocados em xeque com a convocação de uma nova Constituinte.
Maria Creusa Borges: O Tema “crise e Constituição” alcança centralidade com repercussões na teoria constitucional na medida em que ocorrem mudanças de cunho político e socioeconômicas. Assim, acontece na Europa, nos EUA e estar a acontecer na América Latina, e o Brasil não fica de fora dessas repercussões.
Gostaria de problematizar alguns elementos que considero importantes para pensar essa questão. Primeiramente, a crise presenciada no capitalismo avançado a partir de 2008, pensada como crise do capitalismo financeirizado e mundializado por diversos autores como Chesnais, em França, e Lapavitsas, na London School, trouxe repercussões na configuração do Estado conhecida como Estado de Bem-Estar Social, Estado Providência ou Estado prestacional social, cuja emergência se dá a partir da crise de 1929, conhecida como o Crash da Bolsa de Nova York.
A resposta a essa crise de 1929, em termos de modelo de Estado a ser adotado, foi o Estado intervencionista e promotor de políticas sociais. Foi construído certo consenso de que a saída da crise era mais Estado.
Presencia-se mais Estado, tanto nos países capitalistas avançados como no Brasil, a partir do governo Vargas na década de trinta do século XX, com a adoção de um Estado promotor da industrialização com ênfase na política de substituição das importações.
Em termos constitucionais, presenciamos a promulgação de uma nova Constituição, a de 1934, que adota o voto secreto e o voto feminino, mudanças importantes provocadas pelas demandas do contexto da década de trinta. Basta lembrar, como exemplos, que a “Política do Café com Leite”, caracterizada pelo revezamento no poder de forças políticas de São Paulo e de Minas Gerais, e a “Política dos Governadores”, cuja base é o coronelismo e o voto de cabresto, constituíam as marcas fundamentais da sociedade brasileira.
A emergência de forças políticas oriundas do Rio Grande do Sul e da Paraíba irá contribuir para o desenvolvimento da industrialização, via substituição de importações provocada pela crise de 1929, e a configuração de um Estado Nacional com nova Constituição, a de 1934.
Na década de setenta do século XX, presencia-se a uma nova crise do capitalismo, que ficou conhecida como a crise do petróleo. A saída para essa nova crise foi pensada em torno de um consenso pautado em menos Estado e mais mercado. Proliferam-se políticas de privatização com repercussões para os países da América Latina. O chamado “Consenso de Washington”, de 1989, um ajuste pautado em estratégias de privatização de serviços estatais a serem ofertados pelo mercado, sob a justificativa de que o Estado é ineficiente para ofertar serviços públicos.
Na década de noventa, presencia-se uma reforma da administração pública, cujo instrumento jurídico-político constitui o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, e que tem como referência o livro Reforma do Estado para a Cidadania, de autoria de Bresser Pereira. No meu mais recente livro, A educação como um Direito Fundamental, um Bem Público e um Serviço Comercializável, analiso esse instrumento jurídico-político.
Pois bem, em termos constitucionais, presenciamos a construção de uma nova Constituição, em período de transição democrática, após termos vivenciado mais de 20 anos de regime ditatorial. A nova Constituição, promulgada em 1988, e que, agora celebra 30 anos, se fundamenta no reconhecimento, em amplo leque, de direitos fundamentais e tem como fundamento a cidadania, o pluralismo e, como princípio basilar, a dignidade da pessoa humana.
Essa nova realidade constitucional se constitui na assunção dos direitos de liberdade, como os de expressão, de manifestação, de opinião, de associação e em direitos fundamentais, sobretudo os de natureza social, como educação e saúde, inscritos no art. 6º, ainda passíveis de efetivação.
Ressalto que este projeto constitucional ainda está se constituindo em meio a tensões ocasionadas, sobretudo, a partir de 2008, quando se deflagra a crise nos países avançados e na semiperiferia do sistema capitalista. A saída dessa crise se pauta em um novo consenso: Estado interventor para salvar os bancos e agências do sistema financeiro que atuam no chamado ‘espaço de fluxos’ sem regulamentação e supervisão estatal. Estado mínimo para a efetivação das políticas sociais e dos direitos sociais.
Assiste-se a uma série de reformas como estratégias para configurar um Estado necessário ao mercado. Presenciam-se, nesse sentido, reformas: trabalhista, na previdência, nos sistemas de pensões, educacionais, tanto nos países centrais como nos países da semiperiferia, como Portugal e da periferia do sistema-mundo como o Brasil.
A questão que se coloca é: em democracias jovens e deficitárias como as dos países da América Latina e, especificamente, Brasil, que ainda presenciam um desenvolvimento tardio no reconhecimento teórico e constitucional dos direitos fundamentais, sobretudo os de natureza social, falar em elaboração de uma nova Constituição penso ser temerário e motivo de retrocessos. Precisamos buscar a efetivação desses direitos de guarida constitucional e atuarmos em várias frentes: tribunais, escolas.
Ascom: Mudar texto de uma Constituição exige quórum elevado e negociação porque, quase sempre, há descompasso entre a composição do Congresso e o presidente eleito. Os interesses dos políticos se sobrepõem ao interesse público e ao bem estar social?
Leonam Liziero: Eu melhoraria um aspecto da pergunta: o interesse público não exclui a ideia de um interesse político, o bem-estar social é um projeto político. Portanto, em tese, o interesse dos políticos deveria ser o interesse dos representados.
A ofensa ao republicanismo está quando o interesse dos políticos se perfaz em interesses pessoais espúrios. Políticos ruins infelizmente são eleitos em toda eleição. É o preço da democracia. É melhor que políticos ruins sejam eleitos do que políticos ruins cheguem ao poder sem eleição. No caso do Presidente em especial, é natural descompassos. E ainda bem que eles existem.
Quando é necessária alguma mudança na Constituição de interesse do Poder Executivo, é preciso muita negociação, que nem sempre é uma negociação republicana. Essa é uma questão que acredito que somente em longo prazo, quando a educação for uma prioridade não para os políticos, como também para a população, é que paulatinamente, acredito eu, isso poderá ser mudado.
Maria Creusa Borges: A reforma da Constituição demandaria um quórum mínimo procedimental regulado em Constituição, por ser um procedimento mais complexo. Essa complexidade não é, apenas, do ponto de vista formal. A questão é nesses termos: Em que condições socioculturais podemos pensar uma reforma na Constituição?
Não há dúvida de que somente nas condições de uma sociedade aberta e pluralista e a partir de um processo permanente de educação, incluindo a educação dos próprios juristas na perspectiva de um direito constitucional pluralista, de valorização da Constituição e das suas normas, sobretudo as que tutelam os direitos sociais, pressupostos da efetivação das liberdades e da igualdade.
No paradigma do Estado Constitucional, todos os cidadãos têm o dever de proteger a Constituição. Nesse sentido, a tarefa da educação é desenvolver uma consciência constitucional, ‘uma vontade a favor da proteção da Constituição’ e uma interpretação conforme os direitos fundamentais e os direitos humanos. Esses constituem desafios desse início do século XXI, precisamente para os países de transição democrática e de democracias jovens e deficitárias.
Ascom: A atual Constituição é 44% maior do que era quando foi promulgada e é a segunda mais extensa do mundo; só perde para a da Índia. Esse "inchaço", segundo pesquisadores, se deve principalmente ao fato de que uma série de políticas públicas foi inclusa na carta, constitucionalizando a maneira como o Estado deve atuar em diversas áreas. Quais os prós e contras desse garantismo?
Leonam Liziero: É uma questão, entendo, de legística. Muito se compara com a Constituição dos EUA de 1787. Ela é curta porque foi a primeira Constituição em sentido moderno. A Constituição do Império do Brasil de 1824 já era longa.
Veja-se: o Anteprojeto Afonso Arinos, que influenciou muito nossos Constituintes, tratava praticamente dos mesmos assuntos e tinha 436 artigos. Se ao invés de um art. 5º com setenta e oito incisos atualmente tivesses 78 artigos, não ia, na prática, fazer muita diferença; os direitos fundamentais estariam previstos do mesmo jeito. Mas a redação fica mais clara e fácil com um agrupamento lógico de temas sob um caput.
Agora, que é uma tendência com o Estado de Bem-Estar Social uma legiferação maior, uma inflação legislativa, não só do número de normas como também do tamanho delas, isso é inegável. É o Executivo quem planeja e executa a política pública, mas precisa agir dentro dos limites legais determinados pelo Legislativo.
Maria Creusa Borges: Penso que essa questão deve ser problematizada em outros termos: primeiramente, no quadro do paradigma do Estado Constitucional, quais conteúdos devem ser objeto de proteção constitucional, devem merecer o status de direitos constitucionais? Penso que as respostas são de várias ordens a depender do contexto sociocultural e com repercussões na atuação dos tribunais constitucionais.
Em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde direitos sociais básicos ainda não estão garantidos, o desenho constitucional deve ser planejado de forma a incluir o reconhecimento dos direitos sociais, como saúde, educação, moradia, trabalho, inseridos no art. 6º, mas, também, com capítulos específicos.
A Constituição de 1988 reconhece um amplo rol de direitos fundamentais, tanto no extenso art. 5º, como em capítulos específicos, como, por exemplo, o Capítulo III, Da Educação, Da Cultura e do Desporto, que, do art. 205 ao art. 214, reconhece a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família, as finalidades da educação, os princípios do ensino público, a autonomia universitária, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, tolerância no ensino, entre outras matérias.
Não há dúvida de que em Estados mais avançados, que presenciaram a configuração de Estado de Bem-Estar Social, questões econômicas e sociais não emergem como aqui em questões constitucionais. A Constituição americana, por exemplo, restringe o seu conteúdo à organização dos poderes, à cidadania política e às garantias e liberdades individuais.
Penso que a Constituição deveria se centrar nos direitos fundamentais, na área stricto sensu do mandamento constitucional. A questão das mudanças na Constituição não pode ser pensada, apenas, do ponto de vista interno, mas, sobretudo, a partir das mudanças socioeconômicas presenciadas no capitalismo nos últimos trinta anos que demandam a inserção e/ou retirada de direitos fundamentais, especificamente, os de natureza social.
Reformas laborais, educacionais, no sistema de pensões estão na pauta do dia e mudanças na Constituição serão operadas e com atuação do Supremo Tribunal Federal, como ocorreu, recentemente, na discussão sobre o que é ‘terceirizável’ na administração pública.
Nesse sentido, as atividades consideradas exclusivas do Estado, como tribunais, arrecadação, permanecem com Estado interventor. Por sua vez, nos serviços não exclusivos, as parcerias com o mercado se constituem como um modelo a ser intensificado, restando ao Estado a regulação e a supervisão da oferta desses serviços. Não há dúvida de que um direito regulatório precisa ser aperfeiçoado para efetivar a supervisão dos serviços que ficarão cada vez mais a cargo do mercado.
Ascom: A Constituição de 88 passou a garantir direitos sociais como saúde, educação e previdência social. Esse modelo social ainda é sustentável?
Leonam Liziero: Sim, é sustentável. E necessário. O Brasil tem um problema seríssimo de gestão e planejamento. Muitos desses que professam discursos rasos, achando que a economia no Brasil é compatível com teorizações de economistas estrangeiros, não têm ideia nem de como se faz uma lei orçamentária. O regime de previdência é obsoleto, acredito que a capitalização, de forma gradual e muito bem planejada, seria um caminho interessante.
Sobre a saúde, existem exemplos de sucesso na saúde pública em todo País, apesar de boa parte de o sistema ter problemas seríssimos de estrutura. A educação não pode ser encarada como um gasto. Crianças precisam ir para a escola e aprender ciência. Precisam conviver com pessoas fora de seu eixo familiar. Investir em educação é investir na democracia e nas instituições de nosso País. Um povo com déficit de educação é um povo com déficit democrático.
Maria Creusa Borges: Nessa configuração de Estado, o modelo social é sustentável e basilar para a garantia dos direitos clássicos de liberdade e de igualdade, problematizados como a dimensão negativa de atuação do Estado.
Pensar em igualdade de gênero, coeducação nas escolas, tolerância, pluralismo político e de concepções pedagógicas, liberdade de aprender e de ensinar, escolas sem segregação racial são temas de Direito Constitucional, entre outros, protegidos na guarida da Constituição.
Ascom: A principal função do Supremo Tribunal Federal (STF) é assegurar a aplicação da Constituição Federal. Estudiosos afirmam que, nos últimos anos, tem retrocedido em direitos, se tornado um tribunal penal e potencializador de crises. Como a corte deve atuar para cumprir seu ofício?
Leonam Liziero: Essa é uma questão complicadíssima. Reconheço que há um excesso de competências para o STF, previstas no art. 102 da Constituição. Não são poucas! Estão sendo feitas interpretações realmente bizarras de dispositivos constitucionais.
Este é um problema que vem do ensino jurídico também. O “pós-positivismo” (propositalmente entre aspas) é um exemplo claro de como estas interpretações espúrias ocorrem. São leituras errôneas feitas de autores estrangeiros em um sincretismo metodológico que leva ao fascínio principialista.
Os princípios de direito (e nem entro a fundo em questões teóricas) são hoje panaceia para motivações de decisões, fundamentações malfeitas, em pleno descuidado do dever de fundamentação das decisões judiciais previsto no art. 93, IX, da Constituição de 1988.
Maria Creusa Borges: Penso que a atuação dos tribunais constitucionais deve ser a proteção da Constituição e do standard cultural que é o Estado Constitucional como paradigma. Os tribunais devem restringir a sua atuação nessa direção, de proteção dos direitos constitucionais, mesmo sem a necessidade de pensarmos, neste momento, em outra Constituição.
Um exemplo paradigmático consiste no ‘Caso Brown v. Board of Education of Topeka’ (1954), decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja decisão reverteu o julgado em caso anterior, ‘Caso Plessy v. Ferguson de 1896, o qual constitui a base jurídica para validar a segregação racial nos EUA. Dois casos decididos na guarida de uma mesma Constituição: um, validando a segregação racial via doutrina ‘separate but equal’ no tratamento entre brancos e negros e, o outro, representando o fim do ‘de jure racial segregation’ nas escolas.
Um clássico exemplo de mutação constitucional, na qual tem lugar a transformação do sentido e do alcance das normas constitucionais, sem que se opere mudanças no texto da Constituição. Nesse sentido, essa mudança de entendimento constitui papel fundamental dos tribunais constitucionais.