”Contraria a ordem natural das coisas provocar a sede ou penúria de água no interior de uma bacia hidrográfica para derivá-la ou transpô-la para outras regiões.” (Paulo Affonso L. Machado)
Na próxima terça (18), a partir das 19h, no auditório da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ), no centro de João Pessoa, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) entregará o título de Doutor Honoris Causa ao especialista em Direito Ambiental Paulo Affonso Leme Machado, aprovado pelo Conselho Universitário da instituição, de acordo com a Resolução nº 18/2018.
Um dos principais nomes do Direito Ambiental e o primeiro especialista do País e em língua portuguesa no assunto, Paulo Affonso Leme Machado tem cinquenta anos de carreira dedicados à defesa do meio ambiente e da qualidade de vida da coletividade. No currículo, diversas publicações de artigo e livros, com destaque para “Direito Ambiental Brasileiro”, hoje na 26ª edição. No dia 9 de setembro, o homenageado concedeu entrevista à Assessoria de Comunicação Social (ACS/UFPB). Confira a seguir.
ACS - Durante a Assembleia Constituinte de 1988, o senhor apresentou dispositivos para a formação do texto constitucional sobre a questão ambiental. De lá para cá, quais os principais avanços e retrocessos no Direito Ambiental brasileiro?
Paulo Affonso Leme Machado - Junto com amigos e ambientalistas, preparamos a parte ambiental da Constituinte desde 1985, com um Curso Internacional de Direito Ambiental, em Salvador, com dezessete professores estrangeiros. A afirmação de um direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado fincou-se bem na Constituição brasileira. Essa parte já constava nas Constituições de Portugal e da Espanha. Sinteticamente, acentuo que as três grandes novidades no campo ambiental da Constituição do Brasil foram a instituição do estudo prévio de impacto ambiental; a obrigação do controle do risco na produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias com relação à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente; e a possibilidade de sujeitar as condutas e atividades das pessoas jurídicas às sanções penais. Acredito que se deva dar mais efetividade aos processos penais contra as pessoas jurídicas, salientando que tanto o Ministério Público quanto o Poder Judiciário têm as garantias necessárias para enfrentar pressões indevidas.
Especificamente depois da sanção do Novo Código Florestal Brasileiro, em 25 de maio de 2012, o que mudou?
A Lei 12.651/2012 foi intensamente debatida, tendo sido expostas opiniões diversas. Os ambientalistas dizendo que era preciso manter a estrutura principal do Código Florestal de 1965 e agricultores afirmando que a lei era muito exigente, principalmente no tratamento da “reserva legal”. A Lei florestal de 2012 tem acertos e desacertos. A meu ver, seu grande desvio foi anistiar infrações florestais. Assim, condutas contra o meio ambiente, cometidas no passado, foram consideradas “consolidadas” ou anistiadas. O legislador, quando age dessa forma, produz um sentimento de incerteza ética nos cidadãos, pois, na prática, classifica como ingênuos os que cumpriram, até com sacrifício econômico, o Código Florestal anterior.
A UFPB estabeleceu a sua política ambiental em 30 de maio deste ano, segundo a Resolução nº 17/2018 do Conselho Universitário. A Política Nacional de Educação Ambiental, estabelecida na lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999, afirma que compete às instituições educativas promover a educação ambiental. Como as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) podem contribuir nesse sentido?
A Lei 9.795, de 27 de abril de 1999, instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental. Diz a referida Lei que a educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, constando, também, que a educação ambiental abrange a educação superior. As universidades, inclusive federais, podem e devem observar na sua tarefa educativa ambiental o “enfoque humanista, holístico, democrático e participativo” (art. 4º). Em todos as áreas do saber universitário, deve haver espaço para a intensificação séria, contínua e aberta da participação didática entre o docente e o discente como base para a futura participação informada e vigorosa de cada um nas instituições democráticas republicanas. Dessa forma, não se cultua um saber desligado da realidade ambiental, social e econômica do povo brasileiro e das necessidades do Planeta Terra.
A diversificação das fontes de energia, com aposta nas renováveis, e estratégias de defesa da Amazônia, fundamental na regulação do clima global, ainda não são prioridades nas políticas públicas brasileiras. Por que?
O incentivo por parte dos poderes públicos à utilização das energias renováveis vem crescendo no Brasil, ainda que esse incentivo tenha vindo tardiamente. Sou adepto da utilização da energia solar nas residências, tendo colocado, há mais de trinta anos, esse sistema na casa onde morei. Vejo que a captação da energia eólica felizmente está sendo utilizada principalmente em regiões do nordeste brasileiro. A conservação da Amazônia brasileira merece ser continuadamente avaliada e monitorada, necessitando da constante participação da sociedade civil na gestão pública dessa área, caso contrário, o desmatamento ilegal continuará acontecendo.
A crise hídrica iniciada em 2014, no estado de São Paulo, o mais populoso do país, atingiu níveis de seca e redução da oferta de água preocupantes e poucas vezes vistos na história da região. O desvio da água retirada das nascentes das bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) para abastecer a Região Metropolitana configura, segundo o senhor, uma "injustiça hídrica". O que essa injustiça hídrica indica e como é possível garanti-la em São Paulo e em todo o País?
“A bacia hidrográfica é a unidade territorial em que a gestão normal das águas deve ocorrer. As águas de uma bacia devem beneficiar prioritariamente os que moram, vivem e trabalham nessa unidade territorial. Não se fecham as portas para a colaboração hídrica com os que estão fora da bacia, tanto que não se vedou que bacias hidrográficas contíguas pudessem unir-se e integrar um mesmo Comitê de Bacia Hidrográfica. Sendo a bacia hidrográfica a estrada natural das águas, a solidariedade se pratica primeiramente no interior da bacia, para depois transbordar para fora da bacia hidrográfica. Contraria a ordem natural das coisas provocar a sede ou penúria de água no interior de uma bacia hidrográfica para derivá-la ou transpô-la para outras regiões. Seria uma autoflagelação, que a ética não preconiza, pois se ama o próximo amando-se também a si mesmo” - cito meu livro Direito de Acesso à Água (1ª edição, Malheiros Ed., p.31 e 32, 2018). Na transposição de águas de uma bacia hidrográfica para outra “importa equacionar a água disponível na bacia provedora e na bacia recebedora, observando-se a equidade e a razoabilidade. Hão de ser estudados os Planos de Recursos Hídricos de ambas as bacias para se constatarem as demandas de cada bacia hidrográfica e os planejamentos de desenvolvimento já existentes. Os Planos de Recursos Hídricos devem conter, no mínimo, a análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas, de balanço entre as disponibilidades atuais e demandas futuras de recursos hídricos, conforme art. 7º da Lei 9.433” (p. 35).
O que a construção da usina de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no sudoeste do Pará, e o rompimento da Barragem do Fundão, da Samarco em Mariana (MG), representam enquanto política de desenvolvimento brasileiro?
A escolha do local da Usina de Belo Monte e a dimensão das áreas inundadas foram objeto de inúmeras ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal. Os juízes de primeira instância muitas vezes concederam medidas liminares, visando corrigir os equívocos apontados. Contudo, essas liminares foram sendo cassadas por alguns presidentes do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Algumas comunidades indígenas da região protestaram contra a construção dessa usina. O rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, tem origem, a meu ver, na própria legislação de barragens. Desde 2010, anotei, em minhas publicações, minha discordância do poder de autofiscalização das próprias mineradoras quanto à segurança das barragens. Lamentavelmente, a fiscalização do órgão ambiental atrelou-se à comunicação da empresa e não fez, no momento necessário, a devida intervenção corretiva.
O modelo das cidades brasileiras é ruim para a maioria, mas gera lucro para poucos. Como o direito ambiental pode viabilizar o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, garantir mais qualidade de vida para a população?
As cidades brasileiras, na sua maioria, nasceram e cresceram sem um plano diretor equilibrado. Salvo cidades planejadas, como Brasília, os moradores têm que se deslocar bastante para fazer compras, para ir aos bancos ou para buscarem atendimentos médicos. O verde urbano passou a ser uma exceção, enquanto deveria ser o normal em uma país imenso como o nosso. Eu moro em Piracicaba, cidade que teve um benemérito – Luiz de Queiroz – que doou sua fazenda para a instituição de uma Escola de Agricultura e essa escola está dentro da cidade. Por isso, os piracicabanos podem fruir do verde com permanência e facilidade. Quero abordar o problema da construção dos condomínios verticais e o sombreamento das casas térreas que ficam na vizinhança dos prédios. “O direito da captação da energia solar é um direito integrante da função individual e social da propriedade. A interferência de prédio vizinho, que impeça ou dificulte a entrada e a captação da radiação solar na propriedade, não é aceitável pelo direito brasileiro e precisa ser obstada pela Administração Pública e pelo Poder Judiciário”, como disse em meu livro Direito Ambiental Brasileiro (p. 1.273). Continuo dizendo que “não se exige uma tolerância em limites extraordinários, mas em limites aceitáveis ou suportáveis. O que não for adequadamente suportável, não se enquadra na tolerância de permitir-se o impedimento, ainda que parcial, da captação da radiação solar. O saneamento ambiental, no qual se inclui a captação da energia solar e a adequada insolação, faz parte da garantia do direito a cidades sustentáveis, segunto o art. 2o, I, do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001" (p. 1.275).