Eli-Eri Moura - Jornal O Norte (2001)
JON - Até onde você lembre, como e quando começou o seu interesse pela música?
EEM - Cresci num meio bem musical. Meu pai não era um profissional da música, mas tocava violino e bandolim, além de reger o coro da igreja. Minha mãe cantava. Na concepção deles, música era parte natural de uma educação consistente. Conseqüentemente, todos os sete filhos terminaram por aprender um instrumento. Devia ter uns sete anos quando comecei a estudar violão, instrumento de minha escolha, e desde então, também comecei a compor. Troquei depois o violão pelo piano — chegando a fazer Bacharelado nesse instrumento —, e estudei outros como clarinete, violino e flauta doce. Veja que minha carreira como músico profissional se iniciou no Departamento de Artes da UFPB, em Campina Grande, tocando flauta doce num conjunto de música antiga, o “Cordas e Sopros”. Mas a atividade realmente constante, nunca interrompida, foi a da composição. Ao contrário do estudo dos instrumentos, no entanto, ela foi conduzida de forma totalmente intuitiva, sem nenhuma orientação, até manter contato com o Maestro José Alberto Kaplan, quando já me encontrava na graduação. Além das orientações no trabalho composicional, devo a Kaplan uma sólida formação em matérias como harmonia, análise, forma, contraponto tonal, etc.
JON - Suas composições são sempre complexas? Existe uma corrente estética específica que você segue?
EEM - Quando participei de minha primeira Bienal de Música Brasileira, em 1985, aos 22 anos, usava uma linguagem neomodal-neotonal. A partir de 1989, com a composição de “Credo” para solistas, sintetizadores e coro, comecei a desenvolver uma nova escrita, embora a antiga eventualmente retornasse, e ainda retorne, principalmente para a composição de músicas incidentais, peças para coral, arranjos, etc. Esta é geralmente de simples execução e fácil assimilação. No novo caminho, realizei uma pesquisa longa e árdua visando a elaboração de uma linguagem contemporânea, coerente, que recriasse e sintetizasse vários procedimentos da música do século XX. Minhas peças mais recentes exibem técnicas maduras do novo universo sonoro conquistado, a exemplo do que chamo serialização motívica, melodia textural, ritmo textural, contraponto multidimensional, zin-zout, entre outras. Não é minimalismo, folclorismo, serialismo, aleatorismo, neotonalismo, pós-modernismo, ecletismo, nada disso. É um modo pessoal de escrever, decorrente de múltiplas influências, mas individual e conciso no resultado. Não sou o único a fazer isso. No momento, muitos compositores elaboram suas peças a partir de sistemas próprios. Outros assumem um desses “ismos”, sem maiores problemas. A aplicação desse meu sistema tem realmente resultado em peças tecnicamente bem complicadas. Este é um dilema que tenho enfrentado: escrever música de fácil execução e aceitação, ou uma que reproduza fielmente minhas idéias composicionais, mesmo implicando partituras complexas, com poucas possibilidades de apresentação, e vulneráveis a más interpretações. Mesmo com o referido ônus, tenho preferido ficar com a segunda opção e manter certa ‘integridade' musical. Gosto de pensar que cada nova composição implica uma nova jornada, apresentando desafios a serem superados em níveis composicionais e também interpretativos. Sem desafios, o processo não teria muita graça.
JON - Numa matéria publicada n'O Globo, o crítico escreveu referindo-se a “Circumsonantis”: “O jovem compositor paraibano mostrou um daqueles casos raros de união entre opostos aparentemente irreconciliáveis: o nacionalismo e a linguagem vanguardista. Pode-se dizer que raras vezes uma atividade física (a capoeira) foi tão bem usada como ponto de partida para a estruturação de uma obra. ‘Circumsonantis' é um verdadeiro salto no ‘hiper-espaço'”. Você poderia explicar como se dá essa conciliação?
EEM - Bem, acho o termo ‘nacionalismo' inadequado. O que o crítico chama de ‘linguagem vanguardista' interage, na verdade, com elementos de uma cultura local, no caso, a capoeira da Bahia e seus instrumentos — o berimbau e o caxixi —, mas sem evocações ou expressão de sentimentos nacionalistas, ou mesmo folcloristas. A intenção é explorar novas relações entre a música folclórica e popular brasileira e a música de concerto. O processo tem resultado na criação de estruturas que ‘reconstroem' de uma maneira bem particular elementos e/ou aspectos de determinadas manifestações musicais. Assim, ‘a música em si' tem-se tornado o ‘assunto' de cada peça minha. É o que acontece em “Circumsonantis”, “Noite dos Tambores Silenciosos” para orquestra sinfônica, esta relacionada ao maracatu pernambucano, e outras. É bom frisar que a interação não ocorre em um nível superficial, resultando em simples estilização da música folclórica, mas estruturalmente, percorrendo vários níveis hierárquicos das composições e dos seus processos de criação. A estratégia não é nova. Na primeira metade do século XX, Bartók uniu, em níveis estruturais e pré-composicionais, a sua tonalidade expandida e a música folclórica húngara. Aplico princípio semelhante utilizando uma linguagem mais nova, que está à minha disposição, associada à música brasileira.
JON - Estamos (nós, brasileiros) acostumados a reconhecer grandes talentos no futebol, na teledramaturgia, na música popular, por vezes, na literatura e, mais recentemente, no cinema. Você não acha que o Brasil está em falta com os grandes nomes da música erudita? (É dessa forma que você define a sua música?) O que seria necessário fazer para que a população tivesse maior acesso e, conseqüentemente, aprendesse a gostar e valorizar a música erudita?
EEM - Existe o fato de que o século XX foi o grande século da música popular, impulsionado pelo jazz e por fenômenos como a nossa própria MPB, enquanto para a música de concerto, o termo que prefiro, foi um período de profunda transformação, às vezes rápida demais para uma completa assimilação pelo público. Além do mais, mesmo dentro do universo dessa música, preferência se deu e se dá à promoção da produção do passado, principalmente dos períodos barroco, clássico e romântico. Mas em alguns países isso começa a mudar. O mesmo repertório tem-se repetido tanto, que começa a se desgastar, enquanto a produção mais recente cresce quantitativamente, e evidentemente, em algum momento, superará a antiga. Dessa forma, nota-se cada vez mais freqüentemente a presença de compositores consolidados da primeira metade do século XX em programas até de grupos tradicionais. Infelizmente, isso ainda está por acontecer no Brasil. Nossa música contemporânea e do século XX precisa de muito mais divulgação, repercussão, importância. Se você visitar o site na Internet do Quarteto Arditti, um dos mais famosos a se dedicar à interpretação da música moderna, encontrará um repertório com uma lista de mais de cem compositores. No entanto, não aparece um nome sequer de compositor brasileiro. Não há bons ou proeminentes compositores no Brasil? Com certeza há, e dos melhores. A razão está provavelmente no desconhecimento por parte desse grupo da produção dos nossos criadores, que, por falta de mecanismos eficientes, não é projetada nacionalmente, muito menos internacionalmente. Nossos mecanismos de promoção e difusão são raros e muitas vezes falhos. Em vários outros países, inclusive em capitalistas como os Estados Unidos e Canadá, não pense que é apenas a lei de mercado que impulsiona a cultura deles. Há um forte senso de responsabilidade por parte do Estado em promovê-la através dos mais variados incentivos e subsídios. Dadas as proporções do nosso País, precisamos de muito mais festivais, concursos, séries de concertos, PROCULTs, Leis Viva Cultura. Quanto à apreciação, por parte da população, desta música e mesmo de uma melhor música popular, existe uma questão básica de educação. Música, como parte da cultura e da educação, é um dever do Estado, seja na criação de programas públicos, seja na supervisão e subsidiamento de projetos privados. Dou-lhe um exemplo um tanto bizarro. Aposto que você não escutará boa MPB, muito menos música clássica, tocada num desses muitos carros equipados com um som de alta potência, às vezes afetando quarteirões inteiros com poluição sonora. Há uma ligação entre esse ato de extrema má educação, de desrespeito aos outros cidadãos (um mistério talvez explicado por Freud), e o baixo nível de música tocado. Independentemente da classe social, o cidadão que não foi devidamente instruído e é desinformado a respeito de leis, direitos e deveres, é o mesmo que só teve e tem acesso a uma música de baixíssima qualidade. A situação é sintomática de uma educação falha e precária, e de uma mídia oportunista.
JON - Como você vê a música popular feita no Brasil atualmente?
EEM - A mídia que tem feito a difusão fonográfica da música popular nos últimos anos tem-se provado ignorante, mas bastante esperta e eficiente, nivelando por baixo a qualidade do que é apresentado no rádio, na TV, ou gravado em CD. A população nunca foi tão maciçamente exposta a uma música de tão baixa qualidade, de tanta pobreza. É uma lástima ver o Brasil, conhecido lá fora por ser o país dos grandes talentos da música popular, invadido e dominado por tanta bobagem provinda de pseudo-sertanejos, ‘axé music', bregas e funks. Esse fenômeno de marcha à ré, em tal proporção, não ocorreu em outros países. Por se ter chegado tão baixo, a esperança é que, em determinado ponto, a única opção seja subir o nível do que é promovido e apresentado. Espera-se, então, que sejam expostas as novas gerações de compositores que estão seguindo a tradição de Jobim, Caymmi, Caetano, Gil, Arrigo, Milton, Chico, Djavan, Paralamas, Zé Ramalho, Jackson, Gonzaga, Geraldo Azevedo, e tantos outros grandes nomes.
JON - E a erudita?
EEM - O presente momento histórico apresenta, em nível mundial, uma grande variedade de estilos, métodos, linguagens, fusões. A vanguarda, o experimentalismo, o novo pelo novo, característicos das décadas de 60 e 70, ficaram rapidamente datados, embora existam sempre os que insistem nessa linha. Mesmo os protagonistas de novidades como serialismo total, aleatorismo, minimalismo, massas sonoras, retornaram a procedimentos mais convencionais ou procuraram pontos de fusão entre os diversos caminhos. É o caso de Boulez, Stockhausen, Berio, Reich, Glass, Lutoslawski. Alguns deram guinadas espetaculares, realizando o retorno em um contexto referencialista, dentro do chamado pós-moderno, como Kagel, Schnittke, Zimmermann, ou num contexto assumidamente neotonal, neo-romântico, como Del Tredici, Pärt, Penderecki, Górecki, Andriessen. O Brasil reflete essa situação. Se já fomos anacrônicos no passado, em fases em que as músicas de nossos compositores exibiam procedimentos importados já desgastados, também já produzimos uma música de vanguarda autenticamente brasileira, na segunda metade da década de 60, com o movimento Música Nova, desenvolvido em torno da poesia concreta dos poetas paulistas Haroldo de Campos, Augusto de Campos, e Décio Pignatari. Mesmo os compositores desse movimento fizeram o recuo a linguagens mais acessíveis, como Gilberto Mendes, com sua metalinguagem musical que transpõe fronteiras temporais e espaciais. Outros voltaram a trilhar caminhos que são desdobramentos de uma estética apregoada por Mário de Andrade, como é o caso de Santoro, do nosso Kaplan (dentro de um universo intertextual), Marlos Nobre, e vários outros. Da nova geração, recentemente me chamaram muito a atenção os paulistas Sílvio Ferraz e Edson Zampronha, com uma sofisticada fusão de estilos, o carioca Rodolfo Ceasar e o baiano Carlos Chagas, com sua música eletrônica (ou acusmática). Todas as posições são válidas. Quem ganha é o público, com uma profusão de estilos para todos os gostos.
JON - Quem são seus compositores favoritos? E quais o influenciaram?
EEM - São vários os favoritos. De épocas passadas, tenho profunda admiração pelo poder de síntese e equilíbrio encontrados na polifonia de Palestrina, a leveza e transparência de Mozart, o domínio formal e dramático de Beethoven, as revoluções harmônicas de Wagner e Debussy. Em eras mais recentes, para mim, se destacam: Berg e sua música de conciliação, e Varèse, criador de um sistema sonoro único (na primeira metade do século XX); além de Lutoslawski e Ligeti (na segunda metade), exploradores e conquistadores de novos parâmetros musicais, antes apenas imaginados. Compositores como Schoenberg, Webern, Stravinsky, Bartók e Cage são de estudo obrigatório. Influências são muitas: Ligeti, Lutoslawski, Messiaen, Takemitsu, Reich, Rihm, Harvey, Rea, Dhomont, entre outros.