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“Cirurgiãs das Palavras”: entrevista com três jovens escritoras paraibanas

publicado: 18/12/2020 14h22, última modificação: 18/12/2020 15h21

Quantos livros escritos por mulheres você já leu? E quantas eram paraibanas? A Paraíba tem escritores consagrados na literatura brasileira. A maioria dessas referências já faleceu e criou-se um imaginário de que a literatura paraibana estancou com esses nomes. Mas nas 223 cidades do estado, nascem poetas, cronistas e romancistas suficientes para criar novas gerações de paraibanos na literatura. A CoMu entrevistou três escritoras paraibanas da contemporaneidade e conversamos sobre o que é ser escritora, seus processos criativos e a importância do incentivo da literatura no estado. Conheça elas:

lua lacerda, de 21 anos, é natural de Cajazeiras, mas mora João Pessoa desde os 18 anos quando veio cursar Jornalismo na UFPB. Esse ano, publicou seu primeiro livro de poesias, Redemunho (Editora UFPB), através do Edital de Obras Poéticas da UFPB. No livro, escreve sobre a trajetória histórico-social que há entre o sertão e o litoral paraibano. A autora parte do entendimento que há uma evasão forçada diante de políticas coloniais de sucateamento de recursos básicos. “Redemunho se encontra entre essas perguntas cheias de angústias (“não sei se vou ou se fico”) e não oferece respostas porque a poesia não satisfaz como a ciência - e não é visível a olho nu como os poemas nos transformam e nos fazem tomar certas escolhas”, reflete. 

Jennifer Trajano é natural de João Pessoa, professora de língua portuguesa, revisora textual e autora do livro de poemas, Latíbulos (Editora Escaleras, 2019). Ela afirma que nunca pensou em ser escritora, mas quando começou a escrever durante a graduação em Letras Português ser chamada de escritora foi consequência.

 

Débora Gil Pantaleão nasceu em João Pessoa, mas morou entre Ibiara e Conceição até os 10 anos, quando sua família se mudou para a capital. Ela é graduada em Letras Inglês, mestre em Letras e literatura e está concluindo o  doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB. A autora já tem sete livros publicados e vai lançar o seu primeiro romance ainda esse ano. Além de escritora, também abriu sua editora independente com o intuito de abrir espaço para novas vozes, com destaque para mulheres.

 

 

O que é ser escritora?

lua lacerda: Antes das coisas existirem no mundo material, elas existiram nas ideias. Ser escritora é trabalhar com o pensamento. Ser uma espécie de cirurgiã das palavras.

Jennifer Trajano: É ir além das convenções, dessas grades que nos cercam, buscando a arquitetura distinta por meio das palavras. Enquanto escritora posso fazer o que quiser em qualquer espaço-tempo, sou livre. Eis a amplitude: escrever é reinventar o nada que tudo é. As palavras são poderosas, então por que não as usar como tijolos? Um tijolo pode caber perfeitamente em qualquer construção. Ler é isso: pegar o concreto da palavra e inseri-la na obra-subjetividade. Escritores constroem tijolos de vários materiais e distintos tamanhos, daí nos “cabe” o resto.

Débora Gil Pantaleão: Eu acho que ser escritora é ter um compromisso com a literatura, é isso fazer parte da sua vida, do seu dia a dia. É você pensar em histórias, ouvir o que as pessoas têm para falar, ouvir o que as pessoas estão falando na rua, observar... Eu acho que ser escritora é isso e sentir que faz parte da sua vida de fato, não só como algo dispensável.

Como vocês descobriram que queriam ser escritoras?

l.l: Não acho que exista um evento inaugural em que se descobre essas coisas. Especialmente se tratando de um papel meio repulsivo socialmente. Mas cá dentro de mim gosto de cantarolar aquela canção da Flaira Ferro que diz que desejo que a invenção da profissão que movimento seja sempre resultado do que explode aqui dentro. Se eu não trabalhar com a escrita serei uma pessoa muito amarga e sem muito a acrescentar em qualquer outra tarefa que me derem. Mas essas coisas você não descobre. Começa escrevendo poemas e só depois de muito tempo entende. Entende e aceita ou vive a vida amuada.

J.T: Não me vi querendo ser escritora. Na verdade, já me vi escrevendo e ser chamada de escritora foi consequência. 

D.G.P: Desde criança eu já escrevia. Eu escrevia poemas, eu tinha começado um romance no meu caderno de desenho da escola e eu acho que desde ali, eu já queria ser escritora, já queria publicar e queria mostrar algo. Eu acredito que é um desejo que sempre esteve comigo. Na época a gente não tinha computador, eu ia para uma lan house, digitava os poemas lá, imprimia e mostrava para minha mãe, para um primo e ficava querendo ouvir se eles tinham sugestão.

O que a escrita significa para vocês?

 l.l: Para mim, a escrita significa que você está transformando alguma coisa. Através da escrita transformamos o tempo-espaço onde estamos. Estamos sempre reescrevendo os textos de outras pessoas que vieram antes - a escrita é uma forma de dar continuidade à vida humana na terra. A literatura transforma o imaginário social, portanto, transforma toda a sociedade. É para isso que ela serve.

J.T: Tanta coisa que talvez seja melhor resumir a isso: necessidade.

D.G.P: A escrita significa para mim uma oportunidade de poder me expressar perante ao mundo, através dos meus personagens, através de algumas histórias que eu acho interessante contar. É também o meio mais interessante para poder debater assuntos sem ser em forma de debate, mas em forma de história, de diálogo, de flashback. Eu vejo uma oportunidade de pensar sobre aquilo e me comunicar com outras pessoas.

Quais os seus processos criativos de escrita?

l.l: Ele sempre me pede muito silêncio. Sendo sincera, me pede silêncio vezes demais - de forma que preciso optar por simplesmente não escrever ou me tornaria muito reservada e recuso isso. Acho que eu morreria mais depressa se sempre atendesse aos meus impulsos criativos. No entanto, minha mente não me perdoa e tenho a constante sensação de pensar em forma de versos. Digo uma coisa em voz alta, mas na minha cabeça, pensei aquilo como uma estrofe quebrada em quatro versos.

J.T: Preciso que algo ou alguém me instigue a escrever, pode ser uma inspiração ou um pedido a partir de um tema. Não tenho o hábito de escrever todos os dias, acredito que a rotina nessa sociedade capitalista também me priva disso. Ora, preciso trabalhar, estudar, portanto nem sempre leio/escrevo o que gostaria. Alguns temas até me chegam e fogem, justamente pela falta de tempo.  

D.G.P: Como eu escrevo vários gêneros, às vezes para cada gênero existe um processo diferente. O romance, por exemplo, eu preciso de um caderno único para fazer anotações, rabiscos, início de capítulo, fazer mapa, escrever uma frase que me veio, uma ideia. Eu costumo escrever diretamente no computador, não costumo escrever o livro todo no caderno para depois transcrever. 

Qual a importância das editoras independentes, editais e projetos que incentivam a publicação e escrita de autoras?

 l.l: Há que se locomover dentro e fora desses espaços. Se eu não tivesse vindo até a capital, não teria acesso à informação sobre o edital que culminou na publicação do redemunho. Esses editais geralmente não chegam no sertão porque essa região é politicamente pensada para ser esvaziada e abastecer a mão de obra da (ou seria do?) capital. Sim, precisamos do clube Leia Mulheres - e também precisamos que o patriarcado, que é o responsável por impedir que sejamos legitimadas e valorizadas pelo nosso trabalho, desapareça. Por isso, repito: há que se locomover dentro e fora desses espaços. Não se tapa um buraco no estômago com band-aid.

J.T: São de extrema importância por vários fatores. Vivemos em um país onde a educação não é valorizada, temos taxas absurdas de analfabetismos em diversos níveis. Fora isso, ainda existem preconceitos no mundo todo. É um desafio. Moro em uma comunidade periférica e eduquei alunos que sofriam de diversas maneiras. Alguns, para não passar fome, precisaram desistir dos estudos e trabalhar muito cedo. Como alguém assim teria interesse em ler literatura? Como dar R$ 40,00 em um livro quando se precisa comprar alimento que, por sinal, está cada vez mais caro?  Já sobre o incentivo à escrita/leitura de mulheres ainda precisamos labutar. Para mim, a pessoa que não percebe as exclusões sociais – aqui amplio para além do que falo acerca das mulheres –, por todo o histórico, é apática ou cega. Isso é triste e revoltante. Então, o Leia Mulheres, o movimento Mulherio das Letras, o Projeto Iaras, as editoras independentes que dão prioridade à escrita de autoria feminina, entre outras formas de incentivo, a exemplo das voltadas à literatura de autoria negra ou de temas LGBTQ+, são de suma importância, uma luz sonora para as/os que foram apagadas/os e silenciadas/os ao longo dos séculos.    

D.G.P: Eu acho que é super importante o papel das editoras independentes, pois elas têm sido um espaço para diversas vozes e vêm mostrando que esse pessoal também produz e que tem muita coisa de qualidade. Também é necessário deixar furar essa ideia de que só se faz literatura no Sudeste e no Sul, porque o Nordeste é super rico, mas também quebrar com essa ideia de que só os autores mortos são autores bons. Isso vai dar espaço para diversas narrativas, diversas histórias e isso nos ajuda a sentir e refletir sobre o mundo de outra forma.

 

Grace Vasconcelos | Edição: Lis Lemos