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"A lei incorporou novo código operacional: condição de ser mulher”

publicado: 01/07/2020 11h41, última modificação: 01/07/2020 11h41

A delegada Eugênia Vila, do Piauí, foi pioneira na criação de uma Delegacia Especializada em Feminicídio no país, antes mesmo da sanção da Lei 13.104/2015, em 9 de março daquele ano . Com quase 20 anos de atuação na Polícia Civil, Eugênia foi palestrante de um webnário para policiais civis, militares e bombeiros militares da Paraíba, no mês de maio. Em entrevista ao site da CoMu, a delegada conta um pouco de sua trajetória profissional, o trabalho desenvolvido pela delegacia  e como a perspectiva de gênero nas investigações policiais podem mudar a vida das mulheres.

Fale um pouco sobre sua trajetória como delegada especializada em feminicídio.

 Minha trajetória no campo do feminicídio se deu pela criação da 1ª Delegacia do Feminicídio do Brasil, no período que exerci interinamente o cargo de Secretária de Segurança Pública do Piauí. Em 2 de março de 2015, expedi Ato Normativo instituindo o Núcleo Investigativo do feminicídio, com competência exclusiva para investigar assassinatos de mulheres no Estado do Piauí, na perspectiva de gênero. A criação antecedeu a data de vigência da Lei do feminicídio (9 de março de 2015). Ou seja, descrevi o fenômeno sem enquadramento jurídico, amparada em aportes teóricos desenvolvidos na dissertação de mestrado que acabara de defender em dezembro de 2014. Aliado ao Núcleo de Investigação Policial criei o Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero. Identificamos regularidades e variáveis, mapeamos casos, propusemos registros e estatísticas qualificadas, metodologias e protocolos para atuação, além de novas unidades de trabalho, como Plantão de Gênero, aplicativos como Salve Maria e, atualmente, o Formulário Eletrônico de Avaliação de Riscos Esperança Garcia. 

O que a Lei do Feminicídio trouxe de mudanças para as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no campo jurídico?

 No campo jurídico, a lei incorporou novo código operacional: “condição de ser mulher”. A dogmática jurídica iniciou debate sobre nova qualificadora do Código Penal brasileiro. Surge uma nova forma de pensar assassinato de mulheres, com base em situação de “menosprezo” ou “discriminação” em razão do sexo feminino. Há intencionalidade adicional no assassinato de mulheres quando ele se dá na rubrica do feminicídio. O dolo é qualificado na perspectiva de relação de poder denominada “gênero”. 

E no campo das políticas públicas? O que há de modificação?

 Institucionalizado no ordenamento jurídico, o feminicídio ingressou no campo das políticas públicas porque se tornou visível nas estatísticas criminais. Passa-se a perceber  o cenário de assassinatos de mulheres, a identificação de nuances, que possibilitaram adotar diversas medidas de prevenção, como: qualificação das investigações policiais, atendimento especializado 24horas presencial e também virtual, e estatísticas qualificadas. As investigações policiais careciam de aportes teóricos na perspectiva de gênero que possibilitassem à Delegacia do Feminicídio e às delegacias do interior indiciamento com motivações idôneas. Desenvolvemos uma metodologia investigatória do feminicídio, com base nas Diretrizes Nacionais, nos Protocolos da Diretoria de Inteligência adotados para investigação de homicídios e no Protocolo de Recognição Visuográfica elaborado pela Polícia Civil de São Paulo.

Fale um pouco sobre essas ações de prevenção.

Os assassinatos se davam majoritariamente nos finais de semana, no turno noite. Como medida, criamos atendimento policial especializado 24h para suprir dias e horários em que delegacias da mulher estavam fechadas, um plantão geral metropolitano de gênero. Ainda assim, percebemos que as mulheres assassinadas não haviam procurado auxílio anterior da Polícia, mas vizinhos e parentes noticiavam violências anteriores sofridas. Criamos o aplicativo Salve Maria para chamadas 24h da Polícia Militar (Botão Pânico) e da Polícia Civil (Botão Denúncia) preservando sigilo de quem aciona o botão para terceiros que clamem pela vítima. Criamos também o  Painel Eletrônico de Monitoramento do Plantão Metropolitano de Gênero e agregamos ao Sistema de Monitoramento de Crimes Violentos Intencionais (SIMCVLI), com recorte de feminicídio. 

Segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento de 22,2% dos crimes de feminicídio durante esse período de pandemia. Para a senhora, quais fatores ajudam a entender essa alta?

 A experiência do Piauí, com 5 anos de monitoramento de feminicídio, permite inferir que dados sobre casos de assassinatos de mulheres carecem de tempo para se estabilizarem e ganharem contornos de feminicídio. Por ser uma das sete qualificadoras do crime de homicídio, a depender da política de cada polícia, pode ingressar no sistema informatizado local em forma de “Feminicídio” ou “Homicídio Qualificado”. Se os casos se estabilizarem, um dos fatores a que se pode atribuir para eventual aumento é ampliação de tempo de convívio com o agressor em casa. No período da pandemia, no Piauí, observamos que os registros de Boletins de Ocorrências de casos de feminicídio reduziram pela metade, quando comparados com 2019, e apresentaram menor índice em série histórica dos últimos seis anos, desde a vigência da Lei do Feminicídio até 24 de junho de 2020. O dado pode sinalizar algumas possibilidades. Ou as mulheres estão em situação de violência “controlada” por agressores em cativeiros ou de fato houve redução dos casos. O Piauí, portanto, contrasta com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em relação ao feminicídio. 

Em evento para policiais civis, militares e Bombeiros na Paraíba, recentemente, a senhora falou sobre a importância de entender o que é gênero. Há resistência entre policiais civis e militares e peritos para discussões sobre temas como gênero, patriarcado e racismo?

De  outro  ponto, há  tendência  para  naturalização  e banalização  da  temática  da  violência  contra  a  mulher nas  instituições  policiais.  Por  vezes,  se  inicia  pela gestão  superior  quando  deixa  de  priorizar  políticas para  mulheres  no  âmbito  organizacional,  tanto internamente,  como  programas  pró-equidade  de gênero,  raça  e  etnia,  quanto  em  investimentos  em unidades  e  profissionais  que  atuem  na  área.

A perspectiva de gênero insere no “saber dos tiras” ou “saber policial” nova coordenada que exige esforços cognitivos teóricos ligados ao campo das relações humanas, da subjetividade. Algo que vai além do tradicional Procedimento Operacional Padrão, com códigos operacionais “fechados” e respostas objetivas. O novo saber causa “irritabilidade” no paradigma investigatório do elemento subjetivo (dolo) padronizado há quatro décadas pelo Código Penal. Para a Polícia, desvendar o que levou uma pessoa a matar outra (elemento volitivo) encontra-se confortavelmente estabilizado em doutrinas, jurisprudências, métodos investigatórios e saberes policiais. O novo saber desloca a investigação para campos ligados à Antropologia, Sociologia, Filosofia e Psicologia. Ou seja, não basta identificar que aquela morte foi intencional, é preciso demonstrar elemento adicional: “razões da condição de ser mulher”. Esse significante envolve relações de poder, forças heterogêneas que condicionam estados de assassinatos.

Como isso poderia auxiliá-los na investigação de mortes violentas de mulheres? E também em situações de atendimento a mulheres em situação de violência doméstica?

A compreensão da categoria “gênero” é indispensável para compreensão de cenários de assassinatos de mulheres por ocasião de sua preservação pela Polícia Militar e investigação pela Polícia Civil. Compreender relações de poder presentes nesses cenários faz com que se alargue o campo das evidências e se identifique que “condições” situaram aquela mulher assassinada em estado de precariedade. Assim também em casos de atendimento diversos do feminicídio.