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Aumento da violência contra a mulher expõe insuficiência das leis
Um dos únicos índices de violência contra a mulher que teve redução, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 foi, no primeiro semestre do ano, o de registro de ocorrências em delegacia. E esse número se deve, sobretudo, ao isolamento social estabelecido pela pandemia da Covid-19. Por outro lado, a violência em virtude de gênero tem tido um aumento cada vez mais significativo no país.
Durante os seis primeiros meses desse ano, os registros de agressões que dependiam da presença física das vítimas na delegacia tiveram redução, como nos casos de violência doméstica, lesão corporal, ameaças e estupro. Em contrapartida, os chamados para o número 190 (Polícia Militar) tiveram um aumento de 3,8%.
Segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), “a diminuição do registro de algumas ocorrências neste período representa menos uma redução de casos de violência contra a mulher e mais as dificuldades e obstáculos que as mulheres encontraram na pandemia para denunciar a situação de abuso a que estão submetidas, além da instabilidade sofrida no período pelos serviços de proteção”.
A pandemia acentuou um quadro de violência que já era latente no país. De acordo com os dados da violência doméstica, no ano de 2019 foi registrada uma agressão a cada 2 minutos no país. Enquanto nos casos de violência sexual, esse número representou um estupro a cada 8 minutos, sendo 85,7% das vítimas do sexo feminino e 57,9% menores de 13 anos.
Feminicídio: a face mais cruel da violência
Os dados do Anuário também apontam para o aumento de 1,9% no número de feminicídios registrados no primeiro semestre de 2020 em comparação com o registrado no mesmo período de 2019. Em todo o ano passado, foram registradas 1.326 vítimas de feminicídio. Desse total, 66,6% eram negras, 56,2% de idade entre 20 e 39 anos e 89,9% foram mortas pelo companheiro ou ex-companheiro.
Com relação ao maior número de vítimas negras, a doutoranda em Sociologia pela UFPB Ana Paula Batista explica que a violência contra a mulher se intensifica em virtude da raça. “Historicamente, esse grupo de mulheres já é mais vulnerável. São as mulheres negras que ocupam os pontos de trabalho mais frágeis, como empregada doméstica, faxineira ou babá. Então, os dados mostram como ainda é latente as expressões de violência contra esse público”.
Em outro aspecto, a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15 do Código Penal Brasileiro) deveria ser a ferramenta jurídica responsável por frear os homicídios em razão de gênero, mas não tem sido suficiente. A docente e pesquisadora do Departamento de Serviço Social da UFPB, Luziana Ramalho, diz que a tipificação do feminicídio tem como utilidade a denúncia do crime e a possibilidade de gerar uma transformação cultural a longo prazo. Contudo, defende que “não é suficiente tipificar crimes, é preciso lutar, construir e preservar práticas sociais que problematizem e visem descontruir posturas de violência”.
Punir não é suficiente
Como policial militar e especialista em Segurança Pública, Nayhara Hellena aponta que a própria formação dos agentes de segurança pública “deixa a desejar na questão de tratamento de grupos vulneráveis”. Uma vez que o contingente policial é essencialmente composto por homens, esses reproduzem padrões machistas que dificultam o acolhimento que deveria ser feito às vítimas e dificultam as estratégias de prevenção à ocorrência do crime.
Assim, Nayhara defende que “a política pública não tem que se ater apenas ao aspecto punitivista e opressivo, mas também de desconstrução de estrutura e da cultura, de debater sobre a masculinidade tóxica, a heteronormatividade e os padrões de comportamento machistas”. Para isso, a doutorando em Direitos Humanos pela UFPB argumenta que é preciso investir não só na formação policial, mas também no conhecimento que chega às escolas e no debate que é estabelecido na sociedade.
Nesse sentindo, a docente Luziana também avalia que “jamais se muda pensamentos e práticas violentas com mais violência”. Já para a pesquisadora Ana Paula Batista, é preciso sair do binarismo de gênero e também contemplar as mulheres que sofrem histórica e cotidianamente com a violência, como as mulheres trans. “Temos uma caminhada longa para desconstruir essa noção de violência, de descontruir essa cultura patriarcal que está enraizada”, complementa.
Como pontua o FBSP, “o fortalecimento das políticas de combate à violência de gênero passa então pelo fortalecimento das redes de proteção à mulher e por uma definição de metas, diretrizes, recursos financeiros e humanos que possam atuar conjuntamente no enfrentamento da questão”. Os dados do Anuário do FBSP são apenas subsídios para a implementação de políticas que dependem da ação da sociedade civil e, sobretudo, de um governo atuante e comprometido com a vida das mulheres.
Ana Lívia Macêdo | Edição: Lis Lemos