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Cineastas nordestinas trabalham por audiovisual mais inclusivo

publicado: 23/12/2020 15h11, última modificação: 23/12/2020 15h11

O cinema nordestino é essencial para visibilizar a realidade da região e também para construir novas representações sociais. Filmes recentes como “Bacurau” e “A Vida Invisível” , ambos de 2019, apontam para a importância do Nordeste no circuito nacional, mas o processo de produção ainda é, em sua maioria, excludente para as cineastas. Sem a presença de mulheres por trás das câmeras, as histórias perdem a potencialidade e a riqueza narrativa proporcionada pela diversidade.

Segundo o levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine) de 2016, apenas 19,7% das produções comerciais nacionais tinham sido dirigidas por mulheres, sendo nenhuma dessas obras dirigidas ou roteirizadas por mulheres negras. Na região nordeste do país esse desafio é mais acentuado. Esse é o entendimento da realizadora audiovisual e artista multidisciplinar, Kalor Pacheco. “Por estar fora do eixo e haver ainda menos produções sendo patrocinadas do que Rio de Janeiro e São Paulo, o acesso fica ainda mais restrito. Não só para as mulheres, mas, sobretudo, para a população racializada, empobrecida e dissidente sexual e de gênero”, avalia.

Nesse contexto, a cineasta aponta a organização entre associações, grupos e coletivos feministas como facilitadoras para a inserção de mais mulheres na cadeia produtiva do audiovisual, sobretudo em espaços de decisão nas equipes. Kalor, por exemplo, faz parte dos coletivos Nacional Trovoa, CARNI – Coletivo de Arte Negra e Indígena, Negritude do Audiovisual Pernambuco e Nyama – Animação Negra no Continente Africano e Diáspora.

Na Paraíba, a UMA – União das Mulheres do Audiovisual Paraibano é uma dessas organizações. No 14º Fest Aruanda, em 2019, esse grupo foi responsável por articular, junto à organização do evento, o painel “Mulheres Por Trás das Câmeras” e a sessão “Mostra Paraíba, Feminina!”. 

Contudo, na ocasião, a mesa formada pelas realizadoras audiovisuais Luísa Lusvarghi, Ana Bárbara, Pattrícia de Aquino, Vânia Perazzo, Ana Isaura, Cristiane Fragoso e Virgínia de Oliveira teve um grande atraso no horário previsto, deixando as cineastras apreensivas diante da falta de observância e respeito aos horários das atividades.

“A sensação que tivemos era a de que não havia sido dedicada muita importância à temática que considerávamos, e que consideramos ainda, como super relevante, que é a necessidade premente de se debater o papel feminino no cinema paraibano, buscando corrigir distorções e ampliar a nossa participação em todas as funções da pré-produção, produção e pós-produção audiovisual”, explana Virgínia de Oliveira.

Apesar desse episódio, o Fest Aruanda tem proporcionado discussões de gênero com o objetivo de divulgar a produção feminina no nordeste. Na edição de 2020, uma das homenageadas foi Vania Perazzo, que recebeu o Troféu Aruanda pelo Conjunto da Obra e Pioneirismo Feminino no Cinema Paraibano. Perazzo foi a primeira mulher a dirigir um longa-metragem na Paraíba e mantém uma produção cinematográfica ativa desde a década de 1980.

A existência de festivais ainda é uma maneira relevante de viabilizar as produções femininas. Nacionalmente, já existem iniciativas como o Festival Internacional de Mulheres no Cinema (FIM), Tudo Sobre Mulheres – Festival de Cinema Feminino de Chapada dos Guimarães e Curta o Gênero. Na Paraíba, um dos destaques é a Mostra Interestadual do Cinema Paraibano PB-RJ, que já teve edições especiais para debater e evidenciar a produção audiovisual feminina.

Entretanto, os esforços para reverter esse cenário desfavorável às mulheres contam também com os incentivos governamentais. Durante a pandemia, foram criados auxílios emergenciais através da Lei Aldir Blanc e, no estado, da Lei Zabé da Loca. Na capital João Pessoa, um dos incentivos é o Edital Walfredo Rodriguez que, por meio da Fundação Cultural (Funjope), patrocina produções audiovisuais e culmina na realização da Mostra Walfredo Rodriguez.

Na edição deste ano da Mostra, que aconteceu entre os dias 19 e 20 de dezembro de maneira virtual, Kalor Pacheco foi uma das participantes. Para ela, “o audiovisual sempre possuiu um papel decisivo na opinião pública e no imaginário coletivo, e mostras de cinema, como a Walfredo Rodriguez, são mais um motor propulsor dessa mudança”.

Esforços dentro da Universidade

Virgínia de Oliveira, que além de cineasta é docente da UFPB, atesta que ainda há empecilhos para a inclusão de mulheres no audiovisual, citando a falta de política de formação profissional voltada para as realizadoras de cinema na Paraíba e uma cultura de sets formados predominantemente por homens. “Isso dificulta muito o acesso das mulheres a certos saberes da produção audiovisual tanto na teoria quanto na prática”, diz.

Para contribuir para a mudança desse cenário, a docente criou, em 2008, o projeto de extensão “Cinestésico – Cinema e Educação”. O projeto tem como objetivo levar oficinas de iniciação à linguagem cinematográfica a alunos e professores da Educação Básica de diferentes cidades da Paraíba, promovendo atividades de discussão e exibição de filmes. A finalidade é fomentar a memória, pesquisa e criação de estudos sobre o cinema realizado na Paraíba. 

Segundo a docente, o Cinestésico promove a “democratização e capilarização da cena audiovisual paraibana”. Além disso, garante o cumprimento da Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014, que estabelece a obrigatoriedade da exibição de filmes de produção nacional nas escolas de Educação Básica.

Inspiradas por políticas de fomento como essa, as produções audiovisual que surgem dentro das Universidades têm sido cada vez mais relevantes. Uma dessas jovens cineastas é Luzia Costa, graduanda do curso de Rádio e TV, na UFPB. Para a estudante, as mulheres nordestinas são “grandes potências na linguagem da sétima arte”. Atualmente, Luzia está dirigindo, roteirizando e produzindo seu primeiro filme (“Ayoluwa e Seus Amigos Imaginários”). Ela tem como inspiração no audiovisual outras mulheres que também passaram pela Universidade, como Carine Fiúza e Mariah Benaglia.

A luz por trás das câmeras

Embora a representatividade de mulheres seja importante, esse fator, por si só, não é suficiente. Kalor Pacheco explica que é um esforço tênue falar de inserção de gênero na profissão sem considerar as disparidades de raça, classe e sexualidade: “As lutas precisam estar articuladas em entre si para que os ganhos sejam amplos, transversais e coletivos. A inserção de mulheres, sem demarcar a racialização, por exemplo, pode inclusive manter o status quo de classe e branquitude”. A cineasta reivindica também a presença de mulheres negras, indígenas, periféricas, trans, atores não-bináries e homens trans nos filmes.

A produção audiovisual é um exercício de resistência para Kalor, que aponta a vontade de fazer um conteúdo ao qual não teve acesso quando criança e adolescente. “[Quero] apresentar outros modos de ser mulher, de ser negra, contribuir com a escrita da história de nosso povo... Abrir o leque de possibilidade de sermos e contarmos histórias”, resume.

Com esse propósito em mente, a cineasta aponta mulheres que lhe inspiram, a exemplo da diretora e atriz paulista Julia Katharine, a cineasta mineiro-paraibana Ana Moravi e a realizadora audiovisual pernambucana Cíntia Lima, que tem contribuído com a narrativa das mulheres lésbicas no cinema.

É também da diversidade cultural e natural, sobretudo presente na Paraíba, que Virgínia de Oliveira tem a inspiração para o seu trabalho audiovisual. “Parte da minha memória afetiva construída através de tantas narrativas que ouvi de meus pais é constitutiva de minha personalidade e do meu desejo de continuar produzindo nas terras potiguares e tabajaras”, afirma.

Na inspiração de mulheres tantas como Marcelia Cartaxo, Soia Lira, Zezita Matos, Verônica Cavalcanti, Eleonora Montenegro, Ingrid Trigueiro, Suzy Lopes, Kassandra Brandão, Eliana Figueiredo, Raquel Ferreira, Danny Barbosa, Arly Arnaud, que essas cineastas são e se fazem presente no cinema nordestino.

 

Ana Lívia Macêdo | Edição: Lis Lemos