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Mulheres plurais contam suas histórias sob a luz da literatura decolonial
“Descolonizar-se é um processo”, com essa frase, a estudante de Letras e participante do projeto Escrevivências, Yasmine Silva, reflete sobre a importância de descolonizar também a literatura para as crianças dos primeiros anos de educação escolar. O projeto tem o intuito de formar professores/leitores e estimular a prática de mediação de leitura literária, a partir de estratégias que envolvam textos de autoria africana, afro-brasileira e indígena e sob a luz da educação decolonial.
“Vivemos em uma sociedade que foi constituída sobre princípios coloniais e com uma forte visão eurocêntrica ditando os padrões que devemos seguir. Ter a perspectiva decolonial dos anos iniciais aos finais do planejamento educacional colabora para um futuro com indivíduos capazes e mais dispostos a aceitar as diferenças dos outros como comuns à sua e em meio a sociedade em que vivem”, comenta.
Para a estudante, a literatura decolonial abre espaço para as vozes que foram silenciadas ao longo do tempo. “Mulheres pretas, indígenas, são mulheres inúmeras, matéria de incontáveis outras que vieram antes e que se tornarão guias para a formação identitária das que virão. A literatura das mulheres que se encontram dentro do contexto decolonial é uma literatura histórica, científica e real da pele aos ossos”, conclui.
Em junho deste ano, o ciclo contou com a participação da professora, escritora e crítica literária Luciany Aparecida. “Pra mim uma literatura decolonial é uma literatura que pensa um contexto. Pensa o país, pensa a palavra, pensa a língua, a partir do contexto de um país que passou por um processo de colonização e o que isso deixou, ou seja, quais as estruturas que foram sendo montadas ao longo do tempo, como machismo, patriarcalismo e racismo”, explica a escritora baiana.
Yasmine, que também é escritora, afirma que o contato com a literatura decolonial foi um divisor de águas na sua vida. Ela conta que o primeiro contato foi quando decidiu participar de um grupo que promove encontros semanais com debates sobre o tema, onde se deparou com a tarefa de construir um mapa genealógico. “Diria como em um dos meus poemas, que cavei túmulos para alcançar minha história e não me arrependo, pois foi o impulso inicial que eu precisava para me encontrar como pesquisadora e enxergar traços da decolonialidade na literatura que eu escrevo e nunca soube nomear”, diz a poeta.
Luciany acredita que a decolonialidade vai além dos temas e como eles são tratados na literatura, também vai de encontro ao que tem sido determinado como padrão do cânone literário. “Eu acho que essa decolonialidade também tem como pauta, uma não reprodução do que é lido como padrão ou do que se pensa que são as características de um texto literário”, afirma Luciany.
A escrita a partir das vivências
Luciany publicou, recentemente, seu primeiro romance “Florim”, a partir de sua assinatura estética Ruth Ducaso. O nome Ruth é uma homenagem à avó materna da escritora, Luciany acredita que a escrita deve estar intimamente ligada às vivências de quem escreve. A ideia do projeto da criação da assinatura é trabalhar os textos em prosa sob a perspectiva decolonial e discutir feminismo e racismo dentro do texto.
O projeto Escrevivências, vinculado ao CCHLA, tem o intuito de formar professores/leitores e estimular a prática de mediação de leitura literária, a partir de estratégias que envolvam textos de autoria africana, afro-brasileira e indígena e sob a luz da educação decolonial. Paralelamente, o projeto desenvolve ações com o primeiro ano do ensino fundamental da Escola Estadual Professor José Baptista de Mello, em Mangabeira.
Florim conta a história da Dita, uma mulher que mora no subúrbio ferroviário, que escreve no seu diário, escreve poemas e trabalha também no tráfico de drogas. Ao longo dos capítulos, o leitor entrará em contato com uma narrativa em terceira pessoa e em primeira pessoa, que é o diário da Dita. A autora também cruza informações da ficção com a realidade brasileira, como por exemplo, o tráfico de drogas que a personagem principal está envolvida e o tráfico de pessoas na época da colonização, que também era uma ferramenta econômica.
Com Ruth Ducaso, a escritora também já havia publicado “Contos Ordinários da Melancolia”. Sobre o livro de contos, Luciany relata que a ideia foi pensar em lugares fixos que as mulheres ocupam na sociedade e quais as dores e violações que elas enfrentam nesses espaços. “Eu também queria pensar o feminismo e como essa mulher, uma mulher negra, uma mulher periférica, uma mulher rural, pensava ou se relacionava com determinadas questões do feminismo, porque às vezes se a gente vai pensar a discussão do feminismo muito a partir de um lugar eurocêntrico, ele não dá conta de discutir a complexidade que é a mulher brasileira dentro desses perfis”, conta.
Os dois livros são escritos a partir de uma perspectiva decolonial, porque, segundo a escritora, são livros com temáticas para se pensar o contexto brasileiro e com personagens que não reproduzem estereótipos comuns de gênero e raça. Para exemplificar, ela cita Rita Baiana e Bertoleza, personagens famosas do livro O Cortiço, de Aluísio Azevedo, em que as mulheres são colocadas em lugares estereotipados de sexualização e trabalho.
“Nos meus livros, essa mulher encontra um outro lugar, ela é escritora e ela trabalha, mas não está em um lugar só, ela também está no lugar de quem encontra o prazer. Na literatura brasileira, a mulher negra não era a que encontrava o prazer, mas a que era usada sexualmente. Eu acho que então, na perspectiva de tema, de como escrever a mulher, ou como descrever, ou ainda como estabelecer uma relação com a escrita dessas personagens, eu sempre penso nessa perspectiva decolonial”, afirma.
Por fim, a escritora cita Conceição Evaristo e sua ideia de escrevivências, a escrita que nasce do cotidiano, das memórias, das experiências de vida da própria autora, para definir onde suas vivências e sua escrita se cruzam. “Eu acho que essas coisas se cruzam o tempo inteiro, elas não estão dissociadas. Inclusive, eu acho que é um pensamento decolonial, a gente se permitir pensar a literatura e a vida de modo mais aproximado. A ideia de que o texto literário está completamente distante da vida, eu acho que ainda é um lugar muito colonizado de pensar arte”, finaliza.
Extensionista: Aléssia Guedes | Edição: Lis Lemos