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Entrevista: Mulheres com deficiência falam sobre luta e resistência
O lugar que foi designado pela estrutura machista e capacitista para as mulheres com deficiência permitiu o apagamento dessas existências por muito tempo. Não mais silenciadas, mulheres têm resistido contra os estigmas que ressaltam uma figura estereotipada das pessoas com deficiência. A CoMu entrevistou Caroline Constantino e Fábia Pita, assistentes sociais, pesquisadoras e ativistasdos direitos das mulheres com deficiência.
Caroline Constantino é natural de Campo Bom, município do Rio Grande do Sul. É pesquisadora das relações de gênero e deficiência e uma mulher com deficiência congênita. Em setembro de 2018, idealizou o coletivo feminista Helen Keller da pessoa com deficiência. O grupo, que se organiza virtualmente, conta com a participação de mulheres de diversas regiões do Brasil e mais de 5k seguidores que acompanham o trabalho pelo Instagram. Ativista feminista, participa também do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres, lutando em defesa dos direitos das mulheres com deficiência.
Fábia Pita é assistente social e mestra em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba. A paraibana nascida em João Pessoa atua na Coordenadoria Especial da Pessoa com Deficiência da prefeitura do município. Em 2020, iniciou produções de conteúdo com a criação do Nosso Lugar PCD, perfil do Instagram dedicado à promoção de assuntos relativos às pessoas com deficiência, onde aborda temas cotidianos da vivência, estudos acadêmicos na área e luta anticapacitista.
Quando vocês se reconheceram enquanto um corpo político e iniciaram a caminhada de luta?
Caroline Constantino: Por ter nascido com uma deficiência, demorei muitos anos para me reconhecer como pessoa com deficiência. Esse reconhecimento foi adquirido após o término do Ensino Médio, quando comecei a procurar emprego, enfrentei diversas barreiras e não conseguia emprego nenhum. Então percebi que havia algo diferente. Naquela época, eu pensava que essa diferença era eu, mas, na verdade, era a forma que a sociedade me tratava. Foi então que caiu a ficha de que era uma pessoa com deficiência e iniciei a busca por direitos, formando relações com outras pessoas com deficiência por meio de associações, tendo acesso às políticas públicas e comecei a militar. Criei um blog onde compartilhava tudo que aprendia. Mas foi só aos 22 anos, quando participei de um curso feminista que me entendi como mulher. Isso acaba sendo tardio mesmo para muitas de nós: a sociedade não enxergar mulheres com deficiência enquanto mulheres.
Fábia Pita: Iniciei minha trajetória com a inserção no curso de serviço social em 2009. Entrei com uma perspectiva bem assistencialista, que ia fazer caridade, digamos assim. Mas ao longo do curso eu comecei a compreender que a assistente social viabiliza direitos e que pode exercer uma vertente mais crítica, marxista, que dialoga com a classe dominada sobre seu espaço. Então, foi estudando na universidade que eu entendi que era uma pessoa de direitos e política, podendo através da minha atuação profissional fazer a diferença.
Qual a importância de desmistificar os corpos de mulheres com deficiência?
CC: Não tem como mensurar a importância disso, pois vai muito além de ser um benefício apenas para autoestima da mulher com deficiência, acaba reverberando para a questão da violência sofrida por mulheres com deficiência. Então, precisamos fazer com que todas se percebam enquanto mulheres para não vivenciarem a violência e para acessarem os seus direitos, como direitos sexuais e reprodutivos, que muitas vezes são negados para mulheres com deficiência. Muitas são vistas de forma infantilizada e acabam crescendo com esse entendimento, ouvindo que são ‘eternas crianças’, que não podem ter filhos e não vão casar pois não podem cuidar do lar.
FP: A mulher com deficiência em sua sexualidade ou é vista como um ser assexuado, podendo ser caso queira, ou hipersexualizada, qualquer coisa que ela expresse é motivo de espanto. A sexualidade é uma necessidade humana. Somos pessoas, nós sentimos vontades, temos sentimentos, podemos ter um relacionamento. Precisamos prestar atenção no que está sendo propagado sobre a pessoa com deficiência, pois muitas vezes querem nos colocar em caixinhas. Queremos ser representadas enquanto pessoas que têm sentimentos e vivências.
Por que é preciso promover o entendimento sobre o que é o capacitismo?
“Deixa a heroína para a Xena - a princesa guerreira. Eu sou Fábia, mulher com deficiência e com muito orgulho. A sociedade precisa entender esse lugar de fala.”
CC: Eu tenho coordenado um grupo chamado ‘Boteco’ e temos o objetivo de trocar ideias e fortalecer uns aos outros. Nesses encontros discutimos e trocamos experiências que em outros espaços não teríamos a oportunidade de discutir e mesmo que tivéssemos nem todas as pessoas poderiam entender o que passamos por ter uma deficiência. Eu posso ficar falando sobre situações que eu tenha sofrido capacitismo, mas você talvez não entenda, pois não vivencia isso. Pode tentar obviamente, mas não é a mesma coisa que uma pessoa com deficiência compreenderia. Então, esse espaço tem sido muito potente.
FP: De forma geral, o capacitismo é o preconceito relativo às pessoas com deficiência, entendendo a pessoa com deficiência como incapaz de ter relacionamentos, vida saudável, trabalhar. Quando comecei a me aprofundar nos estudos entendi como o capacitismo se manifesta em pequenas coisas. Às vezes estava em uma festa e alguém falava ‘Você vai beber um suco, né?’ e eu: ‘Não, eu quero uma outra bebida’, como também já recebi um ‘parabéns por você estar aqui se divertindo’. Parece mais um evento a minha presença ali. Esses são exemplos de capacitismo: o lugar infantilizado, heroico, de força e superação que a pessoa com deficiência é colocada. Então costumo dizer: deixa a heroína para a Xena - A princesa guerreira, eu sou Fábia, mulher com deficiência e com muito orgulho. A sociedade precisa entender esse lugar de fala.
Como consideram que têm contribuído na luta contra o apagamento das mulheres com deficiência?
“Busco que outras mulheres com deficiência sintam isso através do que o coletivo propõe, abordando que as violências sofridas não são culpa delas e nem da deficiência. - Caroline Constantino”
CC: Hoje tenho me sentido muito fortalecida e isso foi devido ao feminismo. Quando reconheci que o que vivenciava não era algo individual, mas sim devido a uma sociedade capitalista, machista, patriarcal que me colocava tantas barreiras e coloca até hoje, fazendo com que eu não goste do meu corpo e estigmatizando minha existência. Com esse aprendizado, acabo fortalecendo as meninas que estão participando do coletivo, abordando que as violências sofridas não são culpa delas e nem da deficiência e espero muito que nosso trabalho liberte muitas mulheres. Ainda estamos só no começo, essa luta ainda vai demorar muito, mas eu estou feliz de estar fazendo isso.
FP: O lugar que estou hoje é de privilégio, como alguém que trabalha em uma gestão municipal, podendo ter um lugar de fala na gestão para pautar questões que não são visibilizadas no cotidiano das políticas públicas. Tenho atualmente a possibilidade de voz ativa no local que me encontro, pautando junto às autoridades políticas melhorias para que os pessoenses tenham uma qualidade de vida, não vou dizer completamente, pois há implicações, mas as estruturas estão sendo movimentadas. Além disso, com meu trabalho independente no ‘Nosso Lugar PCD’, procuro promover reflexão para que a partir disso haja desconstrução sobre o que é capacitismo.
Extensionista Crislaine Honório | Edição: Lis Lemos