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ENTREVISTA COM LÚCIA OZÓRIO
Em 2003, os moradores da Mangueira, no Rio de Janeiro, enfrentavam a repressão policial do intolerante programa Tolerância Zero, do governo do Rio de Janeiro. Neste momento a comunidade teve uma ideia de resistir a esta conjuntura tão violenta: decidiu contar suas histórias de vida em comum, falar de suas lutas, seus modos de resistir, de agir, de viver. Fizeram isto num “Papo de Roda”, que é um grupo onde compartilham suas experiências de vida. O fruto deste trabalho foi o livro “A favela de Mangueira e suas histórias de vida em comum. Trabalhar com as periferias”, publicado pela editora L´Harmattan em 2016, escrito pela professora e pesquisadora Lúcia Ozório, que conversou com o VEPOP-SUS.
Conte um pouco sobre o conteúdo do livro “ A favela de Mangueira e suas histórias de vida em comum. Trabalhar com as periferias”
O livro tem alguns eixos importantes: discutimos sobre a questão da pesquisa com comunidade. É pesquisa que traz a discussão de se trabalhar com as periferias, da importância do compartilhamento entre pesquisador e participantes. Interessamo-nos por novos modos de resistência, de antagonismo e cooperação no mundo atual. Daí o interesse de se compreender como um comum se faz no tecido social, importante para quem gosta de trabalhar com as periferias. As periferias, enquanto diferenças, vão fazendo seus caminhos na cidade. Trabalhar com as periferias desde a perspectiva de construção do comum é trabalhar contra o silenciamento das diferenças e estimular a produção de novas subjetividades. Inspiro-me nas contribuições de Antonio Negri e Michel Hardt e nas alianças desses autores com Gilles Deleuze e Michel Foucault para discutir a problemática do comum. Trazemos a importância deste conceito, o comum, para o paradigma biográfico, trabalhando com histórias orais de vida em comum, nosso dispositivo de trabalho. As histórias são construídas comumente, no momento da narração. Achamos importante a compreensão de uma memória, comum, que se faz, no presente, no momento da narração, se articulando e atualizando um passado. Percebe-se a construção de uma memória que não se restringe ao sujeito ou ao grupo. Ela é efeito deste processo comum atualizando um tempo que vai “… sempre em frente… ”, mostra uma preocupação com a sobrevivência das obras comunitárias e a consequência da ações humanas contadas pelos participantes do Papo de Roda. Numa segunda parte do livro contamos as histórias dos moradores de Mangueira, todas histórias de amor. Explico-me: nestas histórias percebe-se que na relação entre a pobreza e o amor há um elemento, o comum, que anima modos únicos de cooperação e invenção.
São muitos os autores que fazem parte da bibliografia deste livro que convido as pessoas a ler.
As histórias do livro foram contadas no grupo Papo de Roda. Como surgiu a ideia destes encontros?
O Papo de Roda foi proposto por um morador, ainda em 2003, quando um jovem participante de nosso grupo nos comunica o assassinato de seu amigo, também um jovem, pela polícia. Eles estavam em uma moto, quando a polícia do Programa Tolerância Zero pediu que eles parassem. Assustados com a truculência dessas vistorias, aceleraram a moto, até que os policiais atiraram e um dos tiros matou o amigo deste jovem. O clima foi de grande tristeza e dispersão. Em outro encontro, na semana seguinte, surge a ideia do Papo de Roda, uma forma encontrada de resistência neste momento tão difícil. Interessante que se escolheu começar por uma pesquisa intergeracional, desejo explicitado por Celso, morador e músico de Mangueira, companheiro indispensável neste trabalho: Vamos fazer um Papo de Roda. O idoso vai contar sua história para o jovem para que este conte a sua. Neste momento foi importante buscar o saber do idoso da comunidade, suas lutas, suas resistências para fortalecer sua juventude tão sofrida, tão violentada pelo Estado tão intolerante e desigual. Depois, a questão de gerações foi se dissipando, o grupo foi-se fortalecendo e Celso, que acompanhava o processo tinha o hábito de dizer: mais vale a vida que pulsa em todas a idades. Mangueira me estimulou a pesquisar mais sobre história, história oral, história de vida, e particularmente sobre história de vida em comum, uma especificidade da história de vida. O Papo de Roda se inspira muito nas rodas de samba, cultura da Mangueira e também uma outra forma desta resistir. Muitas vezes depois de um Papo de Roda temos uma roda de samba deliciosa.
Na sua opinião, como este trabalho se insere na Educação Popular?
É um trabalho de educação popular que faz alianças com a história, particularmente com as histórias orais de vida. O saber popular mostra a sua riqueza, profundidade e importância não só para a história, mas para a produção de novas subjetividades. O processo educativo ao meu modo de ver, como diz Paulo Freire, não se baseia em modelos, para serem copiados. É um processo imanente, ou seja, surge do próprio campo de trabalho em que todos aprendem com as experiências de vida contadas nas histórias. Quer coisa melhor para a educação que a experiência de vida? É importante dizer que como todo processo educativo, é social, psicológico, essencialmente político, pois implica em mudanças. Sabemos que as mudanças nem sempre são visíveis, mas estão acontecendo. Esta é a nossa esperança.
Como surgiu a ideia de transformar isso em um livro?
Os próprios moradores sempre tiveram vontade de fazer conhecer suas histórias. Como dizia D. Mena: pobre só aparece em jornal quando é ladrão. Diante de um momento tão violento, da morte de um jovem e quantas mortes Mangueira enfrenta em seu cotidiano, os Papos de Roda foram um movimento de força, de potência inacreditável. Mangueira se propôs a falar de suas vidas, e difundir suas histórias na cidade, no mundo. Como dizia Silvina, se tivéssemos ainda nossos telhados de zinco, estaríamos todos dizimados. Os moradores eram protegidos dos tiros do Tolerância Zero agora pelo teto de concreto. Daí, a importância do livro ser publicado, realizando um desejo de Mangueira. Este livro é um ato de resistência também.
Como os relatos foram construídos e escolhidos para compor o livro?
Eram muitas histórias, coloquei primeiramente aquelas dos que participaram desde o começo, as mais antigas. Fui me inspirando no próprio processo, escolhendo-as com os moradores, considerando também os relatos das pessoas que mantiveram um grande compromisso com a pesquisa. É importante dizer que neste trabalho fazemos a restituição das histórias de vida aos moradores que têm toda a liberdade para dizer o que querem que seja publicado. Assim podemos falar de uma autoria plural das histórias. Como toda história, são fragmentos de histórias. Na verdade nossa história de vida está sempre se fazendo, em muitos fragmentos. Vamos agora passar por um outro momento importante de restituição da pesquisa. Vamos fazer uma festa para homenagear os participantes desta e a cada um oferecer um livro. A comunidade será convidada. E os amigos que puderem comparecer.
De que forma trabalhar com a Mangueira e construir este livro transformou a sua vida?
Essa questão da mudança, acho que o trabalho com as comunidades ajuda você a crescer, a se transformar. Desde 1990 que venho trabalhando com comunidades pobres. Eu trabalhava no hospital Nossa Senhora do Loreto, era coordenadora de saúde mental e durante esse tempo, tentei derrubar os muros do hospital, abrindo-o mais para trabalhos com as comunidades. Fui implementar um trabalho de saúde junto com a comunidade do Parque Royal, no Rio de Janeiro. Já nessa época batalhamos muito para o que a comunidade chamava de Projeto Médico de Família, inspirado no modelo de Niterói, que era o Médico de Família de Cuba. Depois de muitos anos de luta, em 1998, conseguimos a instauração do Programa Saúde da Família. Podemos dizer que as lutas do Parque Royal foram importantes para a implementação do Programa Saúde da Família no Rio de Janeiro. Uma grande parte desta história aparece num outro livro que publiquei em 2014, também pela L´Harmattan que se chama Pensar as periferias. Uma experiência brasileira. Por um novo tipo de política de construção do comum.
Depois em 2003, comecei a trabalhar com pesquisa com a Mangueira.
Quantas vezes quando vou trabalhar com a comunidade, me pergunto o que faço? Às vezes, cansada, penso neste caminho que tento compartilhar com seus moradores. Caminho estranho este, cheio de sentidos que mostram as minhas insuficiências para compreender a arte que é viver com comunidade. E a arte nâo se ensina. É preciso vivê-la. Há momentos em que me sinto com muita alegria, potente. Há momentos em que choro, quando compartilho muitas tristezas. Mas aprendi a ser mais resistente.