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O FIM DA AIDS?

Refletir sobre a resposta brasileira à epidemia de AIDS me parece uma tarefa pertinente dado a importância de uma reflexão crítica e constante sobre as nossas conquistas como movimento social, e sobre os nossos principais desafios no enfrentamento da epidemia.
publicado: 05/11/2019 15h02, última modificação: 05/11/2019 15h02

Refletir sobre a resposta brasileira à epidemia de AIDS me parece uma tarefa pertinente dado a importância de uma reflexão crítica e constante sobre as nossas conquistas como movimento social, e sobre os nossos principais desafios no enfrentamento da epidemia. Há três perguntas que gostaria de apresentar como ponto de partida para esta reflexão: 1 –  Estamos realmente próximos ao “fim da AIDS” (ou de “uma geração livre da AIDS”)? 2 – Estamos vivendo uma nova era (de respostas biomédicas que substituem as respostas sociais e políticas)? 3 – Dentro deste quadro, a resposta comunitária frente à epidemia ainda importa (ainda vale a pena continuar nesta luta, principalmente se tudo estaria quase resolvido)?

Isso implica compreender o atual estado da epidemia, ou seja, se estamos de fato vivendo uma nova era de respostas biomédicas que substituem as respostas sociais e políticas. É consenso entre pesquisadores e ativistas que a grande conquista da resposta brasileira frente à epidemia foi a ousadia e o sucesso da sua resposta social e política. Então, o que quer dizer essa atual valorização das respostas biomédicas na prevenção, principalmente se consideramos a situação atual da epidemia no Brasil? O que resta da resposta brasileira frente ao HIV/AIDS se o futuro do enfrentamento da epidemia depende, acima de tudo, de técnicas e tecnologias desenvolvidas pela ciência e pelas empresas baseadas nos países ricos do (ainda) chamado “primeiro mundo”.

Assistimos na mídia a todo instante o anúncio do fim da AIDS. O assunto está presente, por exemplo, nas reportagens no ano passado sobre 20ª Conferência Internacional de AIDS em Melbourne, Austrália, e recentemente sobre a 8ª Conferência sobre a Patogênese do HIV, em Vancouver, Canadá. Logo, precisamos responder à seguinte pergunta: estamos chegando realmente perto do fim da AIDS? Em breve haverá uma geração livre da AIDS? E se isso for verdade, o que isso quer dizer?

E por último, dentro desse quadro do fim da AIDS, onde escutamos sobre grandes conquistas biomédicas no enfrentamento à epidemia, ainda vale uma resposta comunitária frente à epidemia? A resposta comunitária ainda faz diferença? O que podemos fazer no nível comunitário, dentro da sociedade civil, quando os gestores – os que eu chamo dos “administradores da epidemia” – anunciam o fim da AIDS graças aos medicamentos e as tecnologias produzidos pela ciência, a biomedicina e a saúde pública?

Estamos realmente próximos ao “fim da AIDS”?

Vivemos hoje um curioso clima no qual os supostos administradores da epidemia global de AIDS – incluindo alguns dos responsáveis pelo enfrentamento da epidemia nacional,  em quase todas as declarações, falam sobre a possibilidade do fim da epidemia, o controle da infeção pelo HIV, e a eficácia do tratamento das doenças associadas com esta infecção.  Escutamos constantemente sobre o sucesso da resposta global e nacional, sobre as possibilidades cada vez mais próximas da cura da AIDS e sobre a promessa do fim iminente da epidemia. Mas o que isso quer dizer realmente? Será verdade? Há alguns anos, falavam de uma epidemia fora do controle, e agora anunciam uma epidemia que está quase chegando ao fim. Será que alcançamos tanto em tão pouco tempo? E porque o Brasil parece, pelo menos em alguns discursos, estar caminhando na contramão?

É verdade que a caracterização da situação do HIV e da AIDS no Brasil parece contraditória – em alguns discursos, como por exemplo, no GAP Report da UNAIDS de 2014,[3] falam de uma epidemia crescente entre “grupos-chave” no país, enquanto nos discursos dos funcionários do Ministério da Saúde, é dito que a epidemia está “estabilizada”.[4]Independentemente destas contradições, para aqueles que vivem na linha de frente da epidemia, nas comunidades e nas populações mais afetadas, certamente não parece que a epidemia está chegando ao fim – muito pelo contrário. Então, o que significa essa contradição entre o discurso global que se escuta sobre o fim da epidemia e a realidade que se vive dentro da epidemia, e que de fato, não parece em nada com o seu final? Essa primeira pergunta levanta, obviamente, várias outras que nos levam a refletir sobre a relação entre a epidemia global e a epidemia local, que é conhecida por todos nós na vivência cotidiana.

Para entender estas contradições, é importante lembrar que a epidemia por nós vivenciada é construída não somente em verdades apoiadas em fatos científicos, mas também em discursos, ideologias e valores. Muito cedo na história da AIDS, foi introduzida a ideia da “terceira epidemia”[5] – ou seja, além das epidemias de infecção pelo HIV e de casos registrados da AIDS, percebemos que também existia uma epidemia nas respostas sociais frente o HIV e a AIDS, e que esta terceira epidemia podia ser compreendida como uma epidemia de significados, muitas vezes de estigmas e discriminação, de um vírus ideológico tão perigoso quanto o vírus biológico.[6]

De fato, o que sabemos sobre a epidemia da AIDS não é só por conta de fatos científicos. Novamente, neste sentido, tivemos uma bela lição no início da história da AIDS quando surgiu o Projeto Nomes – primeiro, nos Estados Unidos e depois em vários outros países, incluindo o Brasil. A partir de colchas de retalhos em que foram costurados os nomes de pessoas que morreram da AIDS, o ponto central desta iniciativa foi justamente demonstrar que a epidemia não podia ser conhecida somente pela contagem dos números da epidemiologia. Para conhecer a realidade do HIV e da AIDS, também era necessário reconhecer as pessoas afetadas por ela – que a vida destas pessoas não podia ser reduzida à números, e que para conhecer as circunstancias, as histórias de vida, havia que considerar que os nomes significavam mais do que números.  Enfim, justamente porque se tratava de pessoas, de vidas humanas, e de sofrimento humano, precisávamos de diversas maneiras de “conhecer” a realidade deste fenômeno chamado epidemia de AIDS.

Tudo isto nos leva a perceber que a imagem que temos sobre a epidemia é necessariamente uma visão ideológica – uma visão feita dos diversos discursos que possuímos, e é dentro desses discursos que a realidade da epidemia também é construída. Mas a coisa curiosa aqui é que, nesses últimos anos, o discurso oficial sobre a epidemia foi “repaginado” pelos gestores das agências internacionais, as mesmas que há pouco tempo falavam de uma epidemia fora do controle, mas que decidiram, recentemente, que é mais útil para eles, por razões que vale a pena refletir, declarar a epidemia como próxima ao fim. Este discurso interessa mais às agências do que uma epidemia fora do controle.  No entanto, há um desconexo entre a ideologia e o discurso que está sendo produzido sobre a epidemia no nível da oficialidade e a realidade que as pessoas, na linha de frente da AIDS, vivenciam.

De certa forma, é preciso reconhecer que esta promessa do fim iminente da epidemia também é uma ideologia. Pode ser bem intencionada, ao contrário do vírus ideológico do estigma e da discriminação, mas ainda assim é uma ideologia que está circulando na mídia e em vários discursos de uma forma muito perigosa – precisamente porque cria uma visão “dourada” de sucesso na luta contra a epidemia, mas que não tem nada a ver com a realidade da AIDS que as pessoas vivendo com o HIV vivenciam. Assim é preciso entender o que isso significa, porque essa visão foi construída dessa maneira e o que quer dizer a ideologia sobre o fim da epidemia de AIDS. E se isso é o que interessa para os gestores da epidemia internacional, e aparentemente, também para os gestores da epidemia nacional (pelo menos se avaliamos as declarações sobre uma epidemia estabilizada no Brasil), será que esta é uma visão que também interessa a nós que estamos vivendo o cotidiano da AIDS?

 Enfim, tudo isso nos faz recordar que muito do que se fala da epidemia de AIDS é feito de ficção. São histórias que as pessoas contam sobre a epidemia, que muitas vezes, não tem raiz nos dados científicos, mas sim numa ideia de um vírus ideológico. E muitas das histórias que contam não são verdades – mesmo quando alguns contadores de histórias são cientistas e gestores.  Enquanto eu prezo, como o Betinho nos ensinou há muitos anos, a ideia da cura da AIDS como uma possibilidade real – justamente porque esta ideia nos anima, nos mobiliza – eu entendo as atuais promessas do fim iminente da epidemia como uma falsidade, uma história falsa que está sendo colocada sobre a epidemia, mas que, de fato, não representa a verdade da epidemia que nós vivemos. É sempre importante questionar esses dados científicos para pensar criticamente sobre o que significam para todos.

 Na minha interpretação, a realidade da epidemia do HIV que estamos vivendo – a epidemia que existe no Rio de Janeiro (os dados epidemiológicos que temos do Rio de Janeiro mostram isso com muita clareza, com taxa de infecção entre jovens gays e taxa de mortalidade por AIDS em plena ascensão ao longo da última década[7]) – não é uma epidemia chegando ao fim. Muito pelo contrário. Os dados que dispomos mostram a epidemia se expandindo, ficando cada vez pior – uma visão que, de fato, é muito mais verdadeira do que os dados que a visão oficial divulga em nível global. É importante que esta visão seja discutida e refletida, e de certa forma, desmascarada, para evitar que a falsa promessa do fim iminente da epidemia tenha efeitos desmobilizantes, para evitar que seja uma desculpa para reduzir os recursos disponíveis para o enfrentamento da epidemia ou uma desculpa para adotar políticas neoliberais no setor da saúde como um todo. E é esta preocupação que me leva para a segunda pergunta que veremos a seguir.

Estamos vivendo uma nova era de respostas biomédicas que substituem as respostas sociais e políticas?

 A pergunta “Estamos vivendo uma nova era de respostas biomédicas que substituem as respostas sociais e políticas?” está vinculada à anterior: uma boa parte da ideologia recente sobre o fim da AIDS está vinculada à promoção da ideia de uma nova era de respostas biomédicas que substituiriam as respostas sociais e políticas de enfrentamento à epidemia. Mas o que isso quer dizer realmente?  Quais são as abordagens biomédicas? De fato, quando se fala de prevenção biomédica estamos falando de um “saco de gatos”, de coisas distintas, que é apresentada como se fosse algo muito mais unificado, muito mais coerente do que de fato é: quando se fala de abordagens e da prevenção biomédica,  fala-se de temas e questões muito diferentes. Existe pelo menos três categorias que vale a pena sinalizar.

Uma categoria seria relacionada a novas tecnologias que ainda estão em fase de desenvolvimento, mas que ainda não estão disponíveis para serem usadas pela população. Neste momento, estamos falando de vacinas ou microbicidas anti-HIV. Ainda estão em fase de testes e sendo pesquisados, e ainda não temos a possibilidade de utilizar essas tecnologias. Uma segunda categoria inclui as tecnologias e técnicas antigas, mas que foram recicladas por causa do enfrentamento da epidemia de AIDS. Neste caso, não estamos falando em novas vacinas ou microbicidas, mas em antigas ferramentas como a camisinha ou a prática da circuncisão, esta última não muito divulgada no Brasil, mas que atualmente tem sido muito usada na África, como uma maneira biomédica de prevenir o HIV. Essas tecnologias e práticas antigas são profundamente diferentes das novas tecnologias ainda em fase de pesquisa, como as vacinas ou microbicidas. E a terceira categoria, ou seja, um terceiro tipo de tecnologia,  são as tecnologias novas, basicamente produtos farmacêuticos, já prontos para serem utilizados, mas os quais, em muitos lugares, ainda não estão disponíveis por questões de recursos, questões políticas, entre outras. Neste caso, estamos falando principalmente do uso de medicamentos como o PEP e o PrEP, como uma maneira de prevenir a transmissão pós-exposição ou pré-exposição ao HIV.

Assim, o que podemos concluir é que a suposta unidade da prevenção biomédica, de fato, é uma “salada mista” de diversas tecnologias e técnicas e não um conjunto unificado ou integrado. No entanto, o desafio mais importante sobre todas essas metodologias diversas é que todas, apesar de serem apresentadas como formas de prevenção biomédica,dependem de profundas mudanças de comportamento para serem utilizadas. Tomar um medicamento todos os dias como forma de prevenção pré-exposição não é uma coisa tão simples assim. Aliás, não é tão fácil utilizar nenhuma dessas tecnologias. Todas dependem de mudanças de comportamento que, por sua vez, dependem de questões sociais e políticas para serem colocados na prática.

 Podemos ver isso claramente em relação à questão da PrEP (Profilaxia pré-Exposição).  A PrEP está absolutamente aprovada cientificamente para o uso, e vem sendo usada nos EUA há alguns anos como uma ferramenta fundamental para a prevenção – aliás é a peça central na estratégia do governo federal e de vários estados, como Nova York, para a prevenção do HIV nas assim chamadas “populações chave” (como por exemplo, homens que fazem sexo com homens – HSH). No entanto, a PrEP ainda não foi aprovada na grande maioria dos países, incluindo o Brasil. Recentemente vimos uma reportagem no jornal O Globo dizendo que o Governo planeja disponibilizar a PrEP – e esperamos que em breve esteja disponível para uso em grande escala – mas isto depende de uma série de questões políticas e econômicas (em plena época de crise financeira), que vão além da esfera de poder dos técnicos do Departamento de DST/AIDS, entre elas, as decisões do próprio Ministro, e eventualmente, decisões do Governo de disponibilizar os recursos que seriam necessários (e de ter a coragem de enfrentar os críticos, tais como a bancada religiosa conservadora no Congresso, que certamente vai atacar este método preventivo como mais uma coisa que incentiva “comportamento de risco”).[8]

A PrEP é uma metodologia biomédica, porém uma metodologia que depende de várias questões políticas, econômicas e sociais para ser usada, para ser disponibilizada ou não, até antes de ser colocada na prática sexual das pessoas. E tudo isto faz parte de um processo político que é contínuo – e necessariamente faz parte da nossa agenda como movimento social de pensar sobre este processo político. Seria possível fazer essa mesma avaliação, essa mesma análise para todas essas metodologias supostamente biomédicas. Elas podem ser classificadas como tecnologias e técnicas biomédicas, mas só serão colocadas em prática a partir de questões econômicas, decisões políticas, processos sociais e valores culturais que determinarão a possibilidade de disponibilizar ou não essas tecnologias, assim, chamar estas opções de uma abordagem biomédica simplifica o que é de fato uma questão política e social.

A segunda questão sobre a nova era da prevenção é a questão do tratamento como prevenção. Em inglês a sigla se chama TasP (Treatment as Prevention), que em português seria TcP (Tratamento como Prevenção). Na ausência de políticas mais amplas de prevenção social e política, e como uma forma de enfrentar reduções de orçamentos de programas de AIDS no mundo inteiro, muitos países – não só o Brasil – estão adotando o tratamento como prevenção (TcP) como uma maneira de enfrentar os orçamentos reduzidos e para abandonar um leque mais amplo de atividades preventivas. Testemunhei isso muito claramente no ano passado durante uma viagem que fiz para o Vietnã para conversar com os gestores do programa de AIDS daquele país. Eles falaram muito claramente que, depois de alguns anos, e de muito apoio internacional, do PEPFAR, do Fundo Global, e de várias outras agências de desenvolvimento (como no Brasil tivemos  apoio de empréstimos do Banco Mundial durante muitos anos), o orçamento foi reduzido com a retirada dos doadores internacionais. E a única maneira que encontraram para manter as ações que tinham foi fazer do tratamento como prevenção um eixo fundamental do trabalho deles. Antigamente, tinham dinheiro para fazer educação via pares, intervenções na rua, e diversos outros programas de prevenção, mas esse dinheiro acabou e  também as intervenções e programas. Como a AIDS naquele país não é mais prioridade para as agências internacionais, a única maneira que esses gestores – todos muito comprometidos com o enfrentamento da epidemia – conseguiram achar para manter um trabalho mínimo sem recursos disponíveis foi focalizar a questão do tratamento como prevenção, até porque a única coisa para a qual tinham dinheiro era para tratamento. O resto do dinheiro para prevenção sumiu e TcP virou então carro chefe da política de AIDS daquele país (Vietnã).

Foi naquele momento ficou evidente que o discurso da eficácia das abordagens biomédicas anda de mãos dadas com discursos que justificam políticas neoliberais de ajuste econômico e redução de recursos para o setor da saúde. Esta associação tem um apelo óbvio para gestores de políticas governamentais para o enfrentamento da epidemia. De fato, o tratamento como prevenção tem uma efetividade, não há dúvidas sobre isso. O acesso ao tratamento melhora o estado de saúde das pessoas soropositivas ao mesmo tempo em que reduz a sua carga viral, reduzindo assim a probabilidade de transmissão do HIV aos seus parceiros sexuais. No entanto, ao mesmo tempo, o TcP também faz parte de um processo neoliberal de redução dos recursos, de ajustes estruturais no setor da saúde que está acontecendo no mundo inteiro. Por conta dessa pressão política (e econômica), em vez de ser mais uma iniciativa dentro de um leque de outras ações no plano de enfrentamento da epidemia, o tratamento como prevenção tem sido proposto como a única política (ou o cargo chefe de um menu reduzido de possibilidades) que pode ser utilizada com os recursos atualmente disponíveis.

Justamente porque o tratamento como prevenção tem uma efetividade, pode fazer muito sentido como parte de uma série de opções programáticas razoáveis no enfrentamento da epidemia. Mas quando isso se torna uma única política e todas as outras metodologias são abandonadas por causa de limitações de recursos, então o tratamento como prevenção tem problemas. E tem problemas que nós, do setor comunitário, da sociedade civil, precisamos estar muito atentos avaliando constantemente esta iniciativa. Trata-se de uma abordagem que pode fazer muito sentido quando implementada como parte de um programa mais amplo de prevenção combinada, mas quando programas abandonam todas as outras metodologias que existem, o tratamento como prevenção perde sentido, e precisa ser criticado e questionado pelo movimento social da AIDS.

Uma terceira dimensão sobre as novas abordagens biomédicas que deve ser analisada é a questão do Testar e Tratar, o tema principal do 8° Encontro Estadual das ONGs AIDS do Rio de Janeiro. A política de testar e tratar caminha em sintonia com o tratamento como prevenção. Obviamente, se o tratamento como prevenção vai ser a sua metodologia principal de enfrentamento da prevenção à epidemia, então uma política de Testar e Tratar deve fazer sentido. É o que vai precisar ser feito, porque só é possível usar o tratamento como prevenção se souber quem é soropositivo. Sem saber quem é soropositivo a política de prevenção não funciona. Então, Testar e Tratar se associa com o TcP de uma maneira muito significativa dentro de uma lógica programática. E também, novamente, essa lógica pode fazer sentido, pois traz um raciocínio razoável embutido. Se podemos realmente tratar as pessoas infectadas pelo HIV e controlar a evolução da doença nessas pessoas e assim minimizar a probabilidade dessas pessoas transmitirem o vírus para outras, teremos uma política que pode ter boas possibilidade de sucesso, pelo menos na teoria.

Surge a pergunta fundamental: o que se faz com as pessoas testadas? E mais uma série de outras perguntas: como é que a testagem vai ser implementada, disponibilizada? Vai ser de uma maneira que vai garantir os direitos humanos ou que irá violá-los? As pessoas serão induzidas a se testar e depois não receberão o apoio necessário (psicológico, médico, em todos os sentidos)? Ou de fato receberão esse apoio? E isso nos coloca cara a cara com a questão do Sistema Único de Saúde (SUS). Como é que o SUS funcionará para cuidar das pessoas que testam positivas? Enfim, há uma série de perguntas não respondidas claramente e que precisam ser pensadas quando se adota uma política de Testar e Tratar.

Dentro de todas estas perguntas, talvez a primeira que precisa ser enfrentada como uma questão fundamental é se podemos garantir que a possibilidade de Testar e Tratar significará uma escolha consciente e informada das pessoas, agindo como sujeitos que conhecem seus direitos, em condições de escolher livremente se vão testar ou não e que receberão todo o apoio necessário para lidar com o resultado, principalmente se for positivo. Tudo isso requer empoderamento, requer a conscientização das pessoas e, acima de tudo, requer a conscientização das comunidades mais afetadas. Todo esse processo de conscientização e todo esse apoio que vem depois dos resultados dos testes ainda está em aberto, na minha opinião, e sem enfrentar essas questões me parece que a opção de Testar e Tratar fica enfraquecida. Sem a garantia de boas condições e problemas equacionados, uma política de Testar e Tratar precisa ser monitorada com muito cuidado pelo movimento social.

Aliás, o monitoramento desse processo que definimos como fundamental é, justamente o que não existe hoje em dia – pelo menos não há mais recursos para garantir esse monitoramento. O papel fundamental que a sociedade civil brasileira teve, nos anos 1990 e 2000, de monitorar constantemente e criticamente as ações da saúde pública para garantir o respeito pelos direitos humanos, para garantir que as políticas fossem implementadas de maneira adequada, tudo isso desapareceu nos últimos tempos. E com a situação de ajuste econômico em grande escala, é de se perguntar de onde virão os recursos que garantirão este exercício de monitoramento? Esta é uma pergunta em aberto que a sociedade civil precisa enfrentar.

Dentro deste quadro, a resposta comunitária frente a epidemia ainda importa?

Isso me leva finalmente a uma terceira e última pergunta: dentro deste quadro mencionado, a resposta comunitária frente a epidemia ainda importa?. Esta diz respeito à importância fundamental da avaliação comunitária e democrática das abordagens biomédicas, das políticas públicas, e do caminho para o futuro da resposta ao HIV e à AIDS. Estamos numa nova era de enfrentamento a epidemia, mas não é uma era em que as abordagens sociais e políticas perdem a sua importância. Mais do que nunca, a avaliação constante por parte da sociedade civil, das políticas públicas e das abordagens biomédicas, é essencial para garantir as condições da sua implementação. Para que isso aconteça, são as respostas sociais e políticas, incluindo a perspectiva comunitária, que devem orientar as respostas biomédicas. De certa forma, nós temos que inverter a pergunta: não são os grandes avanços das tecnologias e as abordagens biomédicas que tornam desnecessárias as abordagens sociais e políticas; muito pelo contrário, as abordagens sociais e políticas tem que monitorar, fiscalizar e controlar a implementação das abordagens biomédicas para garantir que essas abordagens tenham, de fato, eficácia. Sem esse monitoramento, sem essa avaliação, não temos a possibilidade de implementar os avanços biomédicos de uma maneira que contribua no enfrentamento da epidemia.

Estamos, portanto, vivendo um momento em que a resposta comunitária frente a epidemia ainda importa – e importa mais do que nunca! Esta resposta comunitária, e toda a mobilização criada pela sociedade civil, continua sendo absolutamente central. Temos que lembrar, sobretudo nós que estamos nessa luta há décadas, que a expertise, o conhecimento, a sabedoria mais importante sobre essa epidemia não vem da ciência, muito menos da saúde pública, muito menos das políticas públicas. Vem das comunidades afetadas, e sempre foi assim desde o começo da epidemia.[9]Este conhecimento que vem das pessoas é o conhecimento mais importante que existe. Somos nós que conhecemos sobre nós, não são os cientistas biomédicos ou sociais.

Da mesma forma, não foram nem a ciência e nem a saúde pública, e sim as comunidades, os responsáveis pela produção do conhecimento e a articulação das estratégias mais importantes do enfrentamento da epidemia. Só vou mencionar duas: a invenção do sexo seguro e a redução dos danos, que são estratégias que não foram criadas pelos professores de saúde pública, nem pelos gestores do sistema de saúde. Foram produzidas pelas pessoas vivendo com HIV, vivendo nas comunidades mais afetadas pela epidemia, que muito antes de saber a existência do HIV (que só foi isolado cientificamente em 1984) já tinham criado estratégias para prevenir os seus impactos dentro dos seus espaços. Nós não podemos esquecer disso jamais. O conhecimento mais importante sobre a epidemia e como enfrentar a epidemia foram criados pelas comunidades. Continuamos sendo a fonte mais importante de conhecimento sobre como enfrentar a epidemia de AIDS. Isso continua tão verdadeiro hoje quanto no passado.

O caminho para uma resposta eficaz da epidemia de AIDS sempre passou, e continua passando, pelo engajamento da sociedade civil e pela produção do conhecimento comunitário. A falsa esperança que as respostas biomédicas resolverão tudo é algo que precisamos questionar. A nova era de abordagens biomédicas oferece sim uma possibilidade de ampliar a caixinha de ferramentas que podem ser utilizadas para enfrentar a epidemia, e essa ampliação da caixinha de ferramentas é superimportante. Todos nós sabemos que o mantra de “use camisinha” não é (e nunca foi) suficiente, assim, ter mais ferramentas é fundamental. Obviamente, queremos as tecnologias biomédicas, queremos PrEP, queremos uma vacina; enfim, todas essas novas ferramentas são importantíssimas. No entanto, são importantíssimas quando utilizadas de uma maneira que respeite a autonomia e a importância do conhecimento que as comunidades mais afetadas pela epidemia de fato tem. Essa utilização não depende somente de médicos ou de técnicas. Depende da conscientização coletiva e da sabedoria das comunidades mais afetadas pelo HIV. Sem essa conscientização, sem essa mobilização, a promessa do fim da AIDS, a promessa da eficácia dos novos métodos e tecnologias biomédicas, nada mais é do que uma falsa esperança. Então, temos na minha opinião, a necessidade urgente de reafirmar a importância do conhecimento comunitário. Temos que lembrar os exemplos do sexo seguro e da redução dos danos justamente para lembrar que isso não nos foi dado pelos médicos ou pelos cientistas. Foram criados por nós, e temos sempre que lembrar disso. Desta forma, o conhecimento comunitário continua sendo tão importante quanto o conhecimento científico e a lógica das políticas públicas para fundamentar uma resposta eficaz frente a epidemia.

Nesse sentido, é essencial defender a produção autônoma do conhecimento da sociedade civil, das ONGs, das comunidades, ainda que de forma interdisciplinar e intersetorial – com os cientistas e com os gestores. Nós somos parceiros nisso, não há dúvidas. Sem essa parceria não avançaremos, mas tem que ser uma parceria igualitária. Não pode ser uma parceria hierárquica onde a sociedade civil é vista de uma forma inferior, no seu conhecimento e na sua capacidade, do que essas outras instâncias da ciência ou administração.

As parcerias internacionais também são necessárias, tais como articulações mais claras com os gestores da epidemia global – até para sensibilizá-los sobre ter cuidados com estas declarações sobre vitórias que ainda não conquistamos (pelo menos enquanto não olharem a realidade da AIDS local e ver o que as pessoas estão vivendo). Este é um dos grandes problemas no enfrentamento da epidemia da AIDS hoje, tal como no passado: os gestores muitas vezes perdem a conexão com a linha de frente, perdem a conexão com as pessoas que vivem a epidemia, e aí seguem o seu caminho e perdem a capacidade de liderar, porque já não sabem o que está acontecendo na base. Assim, essa conexão entre o global e o local é tão importante quanto a ligação entre o setor comunitário com os cientistas, com os gestores. No entanto, é fundamental que essas colaborações sejam feitas de forma democrática, de forma integrada, de forma solidária para garantir uma resposta que, de fato, focaliza as coisas que mais importam para as pessoas.

Esta questão da natureza de parcerias autênticas me parece um bom ponto para finalizar este texto.  A autêntica parceria é caracterizada pelo espírito democrático, o espírito solidário – e o exercício tanto da democracia quanto da solidariedade depende também do respeito e da autonomia. É talvez especialmente importante, nestes tempos que vivemos, reforçar este princípio da autonomia que, talvez mais do que nunca, tem um valor fundamental para os movimentos sociais. O respeito pela autonomia de todas as partes é o princípio básico para todas as parcerias autênticas. Não existe parceria sem autonomia. Esta é uma condição fundamental para parceria. É o ponto de partida para mobilização das alianças que serão necessárias entre diversos setores: cientistas e leigos, governo e sociedade civil, gestores e cidadãos. É por isso que a autonomia, como o respeito, é um ponto de partida para as articulações que serão necessárias para algum dia – talvez nos próximos anos, talvez até no século que vem – quem sabe, podermos dizer que vencemos a epidemia. Como a ideia da cura, esta ideia do eventual fim da epidemia pode ser um sonho que verdadeiramente nos mobiliza, mas não podemos anunciar o fim da AIDS hoje, porque não estamos nem perto disso. Temos um caminho longo até alcançar esse objetivo.

[1] Reflexões apresentadas durante a abertura do 8° Encontro Estadual das ONGs/AIDS do Rio de Janeiro, agosto de 2015.  Agradeço imensamente à comissão organizadora do evento pelo convite.  Agradeço também ao Veriano Terto Jr. pelas sugestões no argumento; à Angélica Basthi e ao Jean Pierry Oliveira pelo apoio fundamental na preparação do texto, e ao Vagner de Almeida pelo apoio em organizar a minha participação no evento.

[2] Richard Parker é diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS.

[3] UNAIDS, The Gap Report, Julho de 2014, disponível on-line:http://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/UNAIDS_Gap_report_en.pdf.

[4] Governo afirma que epidemia de Aids está “relativamente estabilizada”.  Portal da Câmara dos Deputados, 11 de junho de 2015, disponível on-line: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/490078-GOVERNO-AFIRMA-QUE-EPIDEMIA-DE-AIDS-ESTA-%E2%80%9CRELATIVAMENTE-ESTABILIZADA%E2%80%9D.html.

[5] Herbert Daniel e Richard Parker, AIDS:  A terceira epidemia.  São Paulo: Iglu Editoria, 1991.

[6] Fabio Grotz e Richard Parker, “O retorno do vírus ideológico”, Boletim ABIA, No. 60, pp. 19-21, 2015.

[7] Boletim Epidemiológico DST/AIDS e Hepatites Virais 2014, Secretaria de Estado de Saúde, Estado do Rio de Janeiro.   disponível on-line: http://www.riocomsaude.rj.gov.br/Publico/MostrarArquivo.aspx?C=sF6igzRT%2Fp4%3D.

[8] Governo quer distribuir gratuitamente remédio preventivo que evita infecção por HIV.  O Globo, 02 de agosto de 2015, disponível on-line:  http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/governo-quer-distribuir-gratuitamente-remedio-preventivo-que-evita-infeccao-por-hiv-17055493.

[9] Peter Aggleton e Richard Parker, “Moving beyond biomedicalization in the HIV response: Implications for community involvement and community leadership among men who have sex with men and transgender people”.  American Journal of Public Health, 105(8):1552-1558, 2015.  DOI:  http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2015.302614.

Fonte: ABIA